Informação financeira “engenhosa”
Os reguladores, em nome do Estado, seguem a lei, mas movimentam-se num mundo à parte, o dos especialistas, que não é o dos cidadãos em geral.
Tempos houve em que a opinião dos cidadãos acerca dos bancos era positiva. Não lhes passava pela mente, nem aos mais cépticos, que os bancos podiam querer enganar os clientes.
Hoje, fruto de vicissitudes várias, onde avultam os acontecimentos dos últimos anos, traduzidos em acrónimos como BPP, BPN, BES e BANIF, a opinião geral mudou radicalmente. Nuns casos com razão, noutros nem tanto, o facto é que a sociedade, em geral, passou a demonizar tudo o que é financeiro, tendo os bancos e os banqueiros passado de heróis a vilões. Por arrastamento, o Estado, através do Governo, passou a ser crescentemente solicitado para controlar tudo o que seja financeiro. Mas as falhas existem, as entidades reguladoras nem sempre são eficientes nas funções de controlo. Daí que os cidadãos, mais do que nunca, necessitem de possuir “armas” com que se possam defender no mundo das relações financeiras.
Existe, pois, a imperiosa necessidade de o Estado promover a formação financeira dos cidadãos, desde a mais tenra idade, e implementar campanhas de combate à iliteracia financeira dos adultos. Deste modo, dotar-se-ão tais cidadãos de ferramentas de análise e de decisão que hão-de permitir a cada um intervir no “jogo financeiro” de forma (mais) segura.
Uma instituição, um prospecto informativo, um produto financeiro. A instituição é a Caixa Geral de Depósitos (CGD), o prospecto tem oito páginas, o produto o “Caixa 140º Aniversário Maio 2021”. Trata-se de um depósito indexado, com uma componente variável que será devida se a Euribor 6 meses for superior a 1% no vencimento da aplicação. Esta espécie de lotaria associada ao depósito impôs a respectiva catalogação como “produto financeiro complexo”.
Refere o prospecto na caracterização do produto: “… é um depósito indexado não mobilizável antecipadamente, pelo prazo de 5 anos, denominado em Euros, cuja remuneração, a pagar na data do vencimento sobre o montante depositado resultará da soma de uma componente fixa de 1,4% …”.
Duas “armadilhas” que tornam a informação “engenhosa”, para não a designar de outro modo. A primeira respeita ao modo como a taxa é proposta. Há no negócio financeiro uma espécie de regra implícita que se traduz na publicitação e negociação de taxas anuais – mesmo quando os produtos estejam associados a períodos diferentes –, o que leva o potencial investidor, no presente caso, a assumir de imediato que a taxa referida, 1,4%, é uma taxa anual. Errado. À revelia de qualquer regra, esta é uma “taxa para 5 anos”.
A segunda é a “data do vencimento”. Elemento chave para a compreensão da informação anterior, só aparece definida no final da segunda página do prospecto. Tal contribui ainda mais para a confusão desse potencial investidor, dado os períodos de contagem de juros serem habitualmente de periodicidade anual, ou inferior, mesmo quando o pagamento destes só ocorre no fim da aplicação.
Não se pode dizer que a CGD tenha sonegado informação. Está toda no prospecto. Por exemplo, a meio da primeira página é feita referência à TANB (taxa anual nominal bruta] mínima de 0,276%. Mas, depois da assunção inicial, fruto da “engenhosa” apresentação da informação, a mente tende a não absorver este importante dado.
Tratando-se de um produto financeiro complexo, o Decreto-Lei nº 211-A/2008, de 3 de Novembro, impõe à instituição financeira três tipos de obrigações na respectiva comercialização: i) disponibilização ao investidor de documento informativo (… em linguagem clara, sintética e compreensível); ii) identificação do produto como produto financeiro complexo nos documentos informativos e em eventuais mensagens publicitárias; iii) aprovação prévia pela autoridade competente da respectiva publicidade (no caso, o Banco de Portugal).
Este último requisito introduz um elemento de gravidade adicional na situação apresentada. Compreende-se o incentivo da CGD em divulgar um prospecto “engenhoso” como o referido. As taxas de juro estão a níveis anormalmente baixos, necessita de cativar o interesse do investidor num produto com maturidade e indisponibilidade longos, tem de passar a ideia de que a taxa de juro é mais atractiva do que realmente é.
Não se compreende a liberalidade do Banco de Portugal na respectiva aprovação. Ou talvez se compreenda. Os reguladores, em nome do Estado, com as suas equipas de peritos, seguem a lei, mas movimentam-se num mundo à parte, o dos especialistas, que não é o dos cidadãos em geral. Usam um check list para analisar se o prospecto contém todos os itens previstos nos regulamentos, mas não avaliam se o modo como estes são dispostos no texto constitui fonte de engano para os destinatários.
Parece fazer sentido, pois, que os reguladores, de tempos a tempos, corrijam a respectiva bitola de validação da informação, socorrendo-se de painéis de cidadãos com diferentes níveis de literacia financeira, testando neles o nível de clareza e transparência dos prospectos que lhe são propostos para validação.
Foi o que fiz. Testei o referido prospecto quanto a essas características qualitativas, no final de um curso de Cálculo Financeiro com oito horas de duração, ministrado a jovens licenciados, quadros médios de empresas. Entreguei a primeira folha do prospecto e, sob o pressuposto de que não haveria parte variável da remuneração, propus quatro alternativas de resposta para o montante da remuneração total de um investimento de 1000 euros no dito produto, no final dos cinco anos.
Quatro em dezoito inquiridos (22%) acertaram na resposta (14 euros). Os restantes, na quase totalidade, subscreveram a solução que tinha subjacente que a taxa de 1,4% acima referida era anual. Resultados que merecem uma ponderada reflexão sobre a qualidade informativa deste prospecto.
Pode-se argumentar que os inquiridos não possuíam um nível de literacia muito elevado. É um facto. Mas esse nível era suficiente para lidar e operar os conceitos centrais do cálculo financeiro, e crê-se ser muito mais elevado do que o da média dos clientes da CGD que investiram no dito produto. Acresce ser suposto que a informação deve ser inteligível para a generalidade dos destinatários, e não apenas para um conjunto restrito de sumidades financeiras.
A não haver da parte dos reguladores o tipo de cuidado sugerido, o que resta é um círculo de entidades de “consciência tranquila”. O Estado, sujeito abstracto, tem-na porque providencia o quadro legislativo considerado adequado; o mesmo acontece aos reguladores, porque cumprem a letra da lei; e às instituições financeiras, que se limitam a usar a discricionariedade por estes permitida.
Sobram os cidadãos aforradores. Por via dessas “consciências tranquilas”, mais do que investimentos eles acabam, inconscientemente, por fazer apostas com as suas poupanças, num jogo em que têm tudo para perder.
Resta-lhes, como defesa, a prazo, investir na obtenção de um adequado grau de literacia financeira. O retorno que daí lhes advirá será, certamente, superior ao de um qualquer produto financeiro complexo como o referido.
Associado do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude