A fome não são só os outros
Mais de mil milhões de pessoas no mundo foram esquecidas pela economia global. Constituem o grande fracasso de um sistema – diz Martín Caparrós, autor de A Fome – cujo sucesso passa por conseguir que não se revoltem. Um sistema de que, claro, todos fazemos parte.
Durante quatro anos, o jornalista e escritor argentino Martín Caparrós viajou para o Níger, a Índia, o Bangladesh, o Sudão do Sul, os EUA e outros lugares para estudar um fenómeno global e persistente: a fome. Analisando o problema sob todos os ângulos possíveis, tenta mostrar, na obra monumental que a Temas e Debates acaba de editar em Portugal, que não estamos a ganhar a luta contra a inanição.
A palavra “fome” sugere-nos imagens de crianças esqueléticas em África. O problema da fome no mundo corresponde a isso?
Para a minha geração, são as imagens do Biafra. Para a seguinte, é a Etiópia nos anos 80. Mas a verdade é que esse tipo de surtos acontece muito menos hoje em dia. Estão ligados a cataclismos naturais ou guerras. Só 10% da fome no mundo tem a ver com essas emergências. O resto é algo muito mais surdo, subterrâneo, que não se vê, e de que é muito mais difícil falar. Trata-se das populações que todos os dias ingerem muito menos calorias, proteínas, nutrientes do que o necessário, e que por isso acabam por ser afectadas, e por morrer, por todo o tipo de doenças que seriam inofensivas num organismo bem alimentado. A malária, que mata milhões de pessoas, trata-se com um comprimido.
Mas com o grande salto económico em países como a China ou a Índia, temos a ideia de que a fome está a ser erradicada no mundo.
É verdade e não é. As situações são diferentes em diferentes lugares do mundo. A China é o país onde mais se fez para melhorar a situação.
Com o crescimento da economia e das cidades na China, centenas de milhões de pessoas ascenderam à classe média, nas últimas décadas.
O sistema que obteve melhores resultados na luta contra a fome foi esse, que é uma súmula de todo o mal: capitalismo selvagem e autoritarismo. Mas funcionou, é espantoso. Duzentos milhões de pessoas deixaram de passar fome nos últimos 20 anos. Já noutros países, como a Índia, o desenvolvimento económico não fez nada pelos seus 250 milhões de desnutridos.
Porquê?
O sector da população que continua a passar fome está marginalizado. O que se passa em Bombaim, em Deli ou em Bangalore não os atinge. O desenvolvimento industrial não foi equivalente ao da China, e portanto não houve a mesma procura de mão-de-obra.
Que quantidade de riqueza é necessário criar para que aos mais pobres chegue o suficiente para os tirar da fome?
Vendem-nos sempre a ideia de que o crescimento económico capitalista eleva automaticamente o nível de vida de todos. A verdade é que centenas de milhões de pessoas ficam de fora. E mesmo quando não ficam, resta-nos perguntar se concordamos que esses centenas de milhões de chineses comam todos os dias e tenham um iPhone em troca de uma jornada de trabalho de 12 horas, seis dias por semana. Essa é a solução que procuramos para o mundo?
Depende de a quem perguntamos. Se for a eles…
Pois, dizem que sim. Agora. Talvez daqui a 20 anos achem que já basta.
Talvez isso esteja já a acontecer no Brasil.
O Brasil é um caso diferente. Foi uma política de Estado, dirigida ao problema da fome em particular, e não um efeito secundário da industrialização, como na China.
As políticas contra a fome das organizações internacionais têm algum efeito?
É a China que produz a grande mudança positiva nas estatísticas globais. Sustém todo o discurso dos organismos internacionais, a FAO, a ONU, de que estamos a avançar na luta contra a fome. O irónico é que a China ignora totalmente as políticas dos organismos internacionais.
Essas políticas têm tido algum êxito em África?
Em África, nos últimos 20 anos, aumentou a quantidade de pessoas com fome. Todas as políticas do FMI e do Banco Mundial, retirando capacidade de intervenção aos estados e obrigando-os a abrirem a economia ao mercado global, fizeram com que as suas produções não conseguissem competir com as americana e europeia, fortemente subsidiadas.
No livro, refere a existência de uma população “descartável”, que não tem lugar na economia global.
Sim, tomei consciência disso ao trabalhar para este livro. São mais de mil milhões de pessoas, que ficaram arruinadas pela economia global, porque há 20 ou 30 anos possuíam uma pequena terra ou uma oficina, mas agora não conseguem produzir em grande escala. Não têm qualquer função, são lixo. E também um incómodo problema ecológico, porque comem, sujam. São a prova do fracasso do sistema, que não consegue gerir os seus recursos. O sistema, se pudesse, eliminava-as.
Fala do “sistema” como se fosse uma entidade organizada e identificável. Se pensarmos nele como uma realidade caótica, é mais difícil de culpar.
Não, eu não tenho uma visão paranóica do mundo. Não penso que haja um cérebro que controla tudo. Mas ainda que não exista uma inteligência da humanidade, há algumas ideias comuns que fazem com que as decisões sejam tomadas mais ou menos na mesma direcção. Por exemplo, a ideia de que o mais importante é maximizar os lucros prevalece sobre a de que o fundamental é que todos tenham o que necessitam. Por isso é possível encontrar culpados: antes de mais, somos todos culpados, porque nos aproveitamos do mecanismo. Embora essa ideia nos possa levar a uma dissolução da culpa. O que é razoável é dizer: eu sou um pouco culpado, mas não tanto como o dono da [multinacional agrícola] Monsanto, ou das fábricas têxteis do Bangladesh.
Noto que não refere líderes políticos.
Também, mas esses não têm muito poder. É a grande mentira contemporânea: pensamos que podemos influenciar os acontecimentos elegendo pessoas que, depois, não mandam nada.
Mesmo que possamos encontrar os responsáveis pela fome no mundo, será possível atribuir-lhes dolo, ou apenas negligência?
Viajei para diferentes países, para mostrar como funcionam várias estruturas e mecanismos relacionados com a fome. Em muitos casos, a fome é um efeito secundário. Imaginemos que eu quero ganhar mais dinheiro com uma plantação de trigo no México. Se um mexicano na região passa fome, não é problema meu. Eu não beneficio directamente com a sua fome. Já no caso do Bangladesh, por exemplo, o benefício é directo. É o segundo maior produtor têxtil do mundo. As t-shirts baratas que tanto gostamos de usar só são possíveis porque seis milhões de mulheres trabalham 12 horas por dia, seis dias por semana, por 25 euros mensais, para não passarem tanta fome. Os patrões usam a ameaça da fome para obrigar as pessoas a trabalhar com salários miseráveis. Quando você e eu compramos uma t-shirt feita no Bangladesh somos de algum modo culpados, porque estamos a contribuir para a fome. Mas quando o senhor Amâncio Ortega [dono da Zara] junta 50 mil milhões de euros através desse mecanismo, é infinitamente mais culpado.
Um dos capítulos do livro é sobre o Níger, país onde a fome parece ser estrutural. Mesmo aí há culpados?
Fui várias vezes ao Níger, país que me impressiona particularmente, e tinha a sensação de que a fome, lá, era estrutural. A terra é árida, quase areia, como tirar dali alimento? As pessoas comem umas bolas feitas com painço, um cereal muito pobre. Mas ao fim de nove meses acaba, e nos restantes três meses do ano passa-se fome, sistematicamente. Fome verdadeira. Depois percebi que o Níger é o segundo produtor mundial de urânio, mineral explorado por duas empresas, uma francesa e outra chinesa, que não deixam praticamente nada no país. Quando um governo começa a ameaçar fazer qualquer coisa, estas empresas organizam um golpe de estado e colocam no poder alguém da sua confiança. Com uma pequena parte dos lucros do urânio seria possível construir um sistema de irrigação, e alimentar toda a gente. Portanto, podemos dizer que a fome ali é estrutural, mas a estrutura de que estamos a falar não é o problema agrário nigerino, é, sim, a cultura do comércio internacional.
A fome pode ser usada como instrumento político ou económico?
No caso do Bangladesh é claro que sim. Mas os governos percebem que é uma arma de dois bicos, pois se pode servir para manter a população controlada e aplacada, também pode levar a rebeliões.
A fome serviu como bandeira de muitas revoluções. Mas não há, na História, muitos casos em que os famintos se tenham rebelado.
Os historiadores sempre discutiram isso. Será que as situações revolucionárias corresponderam aos momentos mais duros de uma sociedade, ou a épocas um pouco melhores? Porque nos momentos de crise absoluta não havia capacidade para agir. E geralmente são aqueles que têm possibilidade de pensar um pouco mais além do dia-a-dia que se envolvem nos movimentos de mudança.
Como é lembrado no livro, as grande mudanças só ocorrem quando os desfavorecidos lutam. Seria lógico pensar que, hoje, nos países onde há milhões de pessoas com fome, elas, que não têm nada a perder, se revoltassem. Por que razão isso não acontece?
Não tenho resposta para essa pergunta. São pessoas sem forças para lutar. Esse é o grande êxito do sistema: consegue que tanta gente aceite o que deveria ser inaceitável. Creio que um dos factores que determinam isso é a religião. Ajuda as pessoas a aceitar, a justificar, a alimentar alguma esperança. Uma das surpresas neste meu trabalho é que não encontrei famintos ateus.
O ateísmo é um fenómeno do mundo rico?
É um luxo das sociedades satisfeitas.
As ideologias também têm tido o seu papel. Vinte milhões foram mortos à fome na Ucrânia em nome de uma ideologia.
A ideologia socialista partilha muitos mecanismos com a religião. É impressionante que as três maiores fomes do século XX tenham sido produto de decisões políticas: a Ucrânia, no início dos anos 30, por decisão de Estaline; o centro da Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, por decisão dos nazis; a China, em 1959-60, durante o chamado Grande Salto em Frente, por decisão de Mao.
Sempre em regimes autoritários, organizados e centralizados, que teriam capacidade de acabar com a fome, se assim tivessem decidido. Depois dos burgueses, dos proletários, dos camponeses, os famintos alguma vez terão voz na História?
Não podemos prever. Mas é como se esses mil milhões de famintos estivessem neutralizados pela sua própria condição. Nos locais mais difíceis em que estive encontrei uma incapacidade de pensar para além do imediato. E ninguém faz uma revolução se não conseguir imaginar um horizonte para onde avançar. Um dos efeitos da pobreza extrema é limitar o horizonte.
É o caso, contado no livro, da mulher que tinha uma vaca e, quando lhe perguntou o que que pediria se pudesse ter tudo no mundo, ela respondeu: duas vacas.
Sim, a urgência de conseguir comida para o dia seguinte é muito angustiante, e limita as pessoas. E quando essa situação se prolonga no tempo, ao longo de gerações, os indivíduos, debilitados no corpo e na mente, perdem a capacidade de sonhar. Na altura pareceu-me que a história da mulher era simbólica da realidade dessa gente. Mas depois, pensando muito nisso, concluí que afinal todos somos como Aisha e as suas duas vacas. Porque não somos capazes, por exemplo, de desejar um mundo onde ninguém passasse fome. Se nos perguntarem, também dizemos: duas vacas. Não imaginamos um mundo onde não tivéssemos vergonha de viver.
As grandes utopias estão desacreditadas, depois de elas próprias terem levado às maiores fomes do século XX.
É verdade. Há épocas em que há um projecto de futuro, outras em que se está à procura. Estamos numa dessas, que pode durar 50 ou cem anos, o que não é nada em termos do tempo histórico, mas é uma vida inteira na perspectiva de um indivíduo. Isso cria a ilusão de que não é possível mudar.
Em todas as épocas há grupos diferentes, quem queira mudar e quem seja conservador.
Sim. Mas hoje há um estado de espírito geral segundo o qual isto vai ficar assim para sempre. Os grupos que propõem formas diferentes de futuro acabam de fracassar. Essa forma de futuro que era o socialismo leninista fracassou.
Da próxima vez teremos de fracassar melhor, como diz Beckett, na epígrafe do seu livro.
Sim. Acredito que, no longo prazo, encontraremos formas de melhorar as sociedades. Isso sempre aconteceu. Sou um optimista confuso.
Um dos seus livros é uma investigação crítica em relação ao movimento ambientalista. Acha que é uma falsa causa?
Não. Não sou negacionista quanto às teses sobre o aquecimento global e os seus perigos. O que questiono é o uso político e discursivo que se faz disso. Por um lado, tudo começou com o lobby de Al Gore, que tinha o objectivo oculto de promover a energia nuclear – gorado depois do desastre de Fukushima. Por outro lado, parece-me que o discurso ecologista é próprio de uma época sem um projecto de futuro.
É uma causa para nos manter entretidos?
Sim, mas também para nos fazer temer a mudança. Segundo os ecologistas, a mudança é má, significa degradação. Há uma glorificação da ideia de conservação. É uma forma de se poder ser conservador sem vergonha. E além disso tem a vantagem de, ao contrário da fome, ser uma ameaça igualitária. As mudanças climáticas vão afectar-nos a todos. A fome não me atingirá a mim, nem a si, nem a ninguém que conhecemos.
Os seus livros têm uma forte componente ideológica. Não teme que isso retire força aos factos apresentados?
Qualquer discurso é ideológico. Mesmo quando parece neutro. O triunfo de uma ideologia é que não a consideremos ideologia. Se escrever um livro considerando como natural a propriedade privada, isso não é ideológico? Se eu pensar que não há justificação para uma pessoa ter duas maçãs e outra não ter nenhuma, e passar fome, isso também é ideológico. Quando alguém tem uma visão do mundo diferente da dominante, dizem: isso é ideologia. Qualquer trabalho jornalístico é ideológico, e eu, como sou honesto, não o escondo.
Mas há capítulos inteiros puramente opinativos.
Mas quando apenas descrevo factos também estou a ser ideológico, através das escolhas que faço. Podia optar por falar da fome entrevistando apenas governantes e empresários. Por alguma razão decidi ir falar com quem passa fome. Durante muito tempo pensei que não devia, nos livros, tornar as minhas opiniões demasiado explícitas, porque o leitor poderia sentir desconfiança, e seria ineficaz. Mas agora acho que dizer o que penso é uma questão de honestidade.
Um jornalista pode ser activista?
Não concordo que haja jornalistas activistas e outros não-activistas. Todo o jornalista é portador de uma visão do mundo, e por isso é activista. Só que uns têm uma visão partilhada pela maioria. Àqueles cuja visão é um pouco diferente chamamos activistas.
Uma investigação global sobre a fome permite uma compreensão mais profunda do fenómeno do que trabalhos especializados e sectoriais? Porque decidiu avançar para um projecto tão ambicioso?
Há uns cinco anos fiz um trabalho para a ONU que implicava viajar para contar histórias de jovens afectados pelos grandes problemas mundiais. E apercebi-me de deste problema recorrente: muitas pessoas não comiam o suficiente. Comecei a pensar: quero contar isto. Acho que a forma mais fértil de encarar um assunto é fazê-lo em termos globais. Mas não há muito quem o faça em língua castelhana. Preferem-se os temas locais ou nacionais. Eu quis mostrar que nós, em castelhano, também podemos falar sobre o mundo. Porque só os anglo-saxónicos o podem fazer? Porque o mundo é deles, e nós somos da nossa aldeia?