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Há um Brasil luminoso além do muro do quintal de Fred Martins

Cantor e compositor brasileiro estreia esta quarta-feira em Lisboa, no B.Leza (às 22h) o seu novo disco, com título de inspiração pessoana. Ou o seu Brasil visto da Europa.

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“Uso instrumentos meus, do Brasil, mas com outra abordagem" DR

O nome de Fred Martins não dirá muito à grande maioria dos portugueses, mas as suas canções sim. Conhecemo-las nas vozes de Ney Matogrosso, Maria Rita ou Zélia Duncan, entre outros. A viver há alguns anos em Espanha, ele olha o Brasil de fora no seu novo disco, gravado em Portugal e editado na Europa. Para Além do Muro do Meu Quintal, frase tirada de um verso de Alberto Caeiro/Pessoa, que ele musicou e agora gravou (Noite de São João), titula o disco que já está nas lojas portuguesas e é hoje apresentado ao vivo em Lisboa, no palco do B.Leza, pelas 22 horas.

O que levou Fred Martins para fora do Brasil? O convite de um casal de produtores galegos (ela é a cantora Ugía Pedreira) para uma série de concertos num festival de músicas portuárias, em cidades distintas da costa. Isso foi em 2009 e, por razões várias, ele ficou depois a morar em Espanha. “Na minha geração, a realidade brasileira sofreu uma transformação muito grande. As cidades ficaram muito inchadas, muito violentas, pouco humanas.”

Nasceu em Niterói, a 14 de Junho de 1969, mas morou em Brasília até aos 6 anos. “Lembro uma cidade vazia, daqueles prédios horizontais, muito céu, muita terra. E Niterói era uma cidade de casario, que passado uns anos foi abaixo por conta da especulação imobiliária. Vi um mundo que se desencantou, de repente. E culturalmente idem. O filme Cidade de Deus tem um fundo muito verdadeiro. Mostra um tipo de banditismo que eu vi ainda muito amador, quase que amigável, o marginal ainda humano. Mas quando chega a droga e a arma, e todo o envolvimento da polícia com os grandes poderes, tudo isso vira uma lógica muito perversa. E o Rio, centro cultural do Brasil, coração do samba e da bossa, foi sendo estrangulado.”

“Como um tecido roto”

Fred herdou do pai, nascido em Minas mas criado nos subúrbios do Rio de Janeiro, o gosto pelo samba, o choro, a bossa. “Era um ambiente mágico para mim, ter génios vindos da esfera popular como o Nelson Cavaquinho ou o Cartola. Hoje isso acabou. Tivemos um baque com 21 anos de ditadura militar, que desmontou a máquina pública de educação e saúde. O meu pai, carteiro, pobre, ainda teve condição de estudar. Tinha instrumentos para entender o mundo: um bom texto, um bom português, estudou latim. Hoje o brasileiro, em geral, é quase analfabeto. Assina o nome.”

Com o governo do PT houve uma mudança, mas não bastou. “Muita gente começou a ter acesso a bens materiais, de consumo, mas não a bens culturais e de cidadania. E estamos a pagar um preço muito grande, hoje. Eu saí do Brasil porque já estava muito infeliz ali, o Brasil que eu amava e que amo está muito maltratado, como um tecido roto.” Para Fred, o governo de Lula ainda foi o melhor de todos em termos de dividir a riqueza. “Algumas políticas de inclusão foram feitas. Mas foram mínimas. Mas a diferença entre as forças do dinheiro e a cidadania é muito grande no Brasil.”

Foi há uma década que Fred se instalou em Espanha, em 2010. E isso influiu no seu modo de produzir música. “Eu vim já maduro, com 40 anos. Foi João Gilberto, com Eu vim da Bahia, que me fez fazer música. Isso mudou a minha vida, fiquei muitos anos a tentar entender essa coisa misteriosa, a escrever songbooks dos mestres. Na Europa, comecei a espantar-me com outro lado. Aquilo que eu pensava que era muito brasileiro, muito nosso, não era só. Vi uns palestinianos tocando música árabe e aquilo parecia um baião. O próprio cavaquinho brasileiro, muito ligado ao choro e ao samba, também existe noutros lugares.” Isso fez com que ele explorasse outras sonoridades no seu trabalho. “Uso instrumentos meus, do Brasil, mas com outra abordagem. Tentei isso neste disco, inclusive convidando outros músicos.” A cantora cabo-verdiana Nancy Vieira, por exemplo, é um das convidadas, fazendo um dueto com ele em Meu silêncio, um dos onze temas do disco. “É uma síntese. A partir dele vou poder libertar-me um pouco e experimentar ainda mais.”

Com Fred Martins (voz e guitarras) estarão no B.Leza os músicos Paulo Borges (produtor do disco, nas teclas e samplers),Sérgio Menem (violoncelo), Bony Godoy (baixo) e Ruca Rebordão (percussão). E, como convidada especial, Nancy Vieira.

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