O PM aldrabão e o PR (outra proposta modestíssima para a transparência)
A informação relativa à actividade dos titulares de cargos públicos pertence ao Estado e deve ser deixada por estes em condições que permitam a sua identificação, classificação, arquivo e recuperação.
Imaginemos, por redução ao absurdo, que havia um ex-primeiro-ministro aldrabão que, anos depois de ter abandonado as suas responsabilidades executivas, decide contar um episódio da sua vida política que envolve as suas relações com o Presidente da República de então. Imaginemos, prosseguindo o esforço de imaginação, que a versão que o ex-PM relata é frontalmente contestada, nas horas que se seguem, por declarações do ex-PR e que o episódio em questão, longe de ser trivial, é mesmo um episódio central da história recente do país e do mundo e que foi determinante até, por hipótese, para o envolvimento do país numa guerra.
Perante as duas versões, naturalmente que os cidadãos não saberão em qual acreditar, ainda que haja mais indícios a apontar para uma do que para a outra. E a questão é que não só o julgamento feito no presente se torna difícil como até a história terá algum embaraço para deslindar o caso, tanto mais que o PM da nossa fábula possui um descaramento inaudito e mantém a sua versão.
Problemas do tipo da situação imaginária que consideramos acima podem ocorrer de facto, mas poderiam (e deveriam) ser evitados se todos os governantes, PR e outras figuras do topo da hierarquia do Estado mantivessem, por dever, uma agenda de todas as suas actividades, contactos, reuniões e conversas oficiais - para além dos diários íntimos ou políticos que algumas destas personalidades mantém por gosto pessoal - e fossem obrigados a deixá-los à guarda do Estado no momento da sua saída e estes documentos fossem disponibilizados para consulta um certo número de anos após os factos. Dez anos parece um prazo razoável mas é mais importante estabelecer o princípio do que definir o prazo.
Infelizmente, os governantes têm o péssimo hábito de não só não manterem registo fidedigno de todos os seus actos e contactos oficiais como até consideram amiúde que todo o fruto do seu trabalho como membros do Governo (minutas de reuniões, mensagens, agendas, etc.) é sua propriedade pessoal e, com frequência, deixam vazias as gavetas e os discos dos seus computadores quando abandonam os seus cargos. Ora é evidente que, com excepção dos seus objectos pessoais e da informação que diga respeito à sua vida pessoal, todo o resto, toda a informação relativa à sua actividade oficial, não lhes pertence, é pertença da República e toda a apropriação dela (ainda que “para o seu arquivo pessoal”) contititui um abuso de confiança e uma delapidação de património público, quando não uma sonegação ou destruição de informação com eventual relevância judicial. Levar consigo o conteúdo dos discos de computador de trabalho ao abandonar um cargo público é comparável a levar os quadros que decoram as paredes do gabinete, comprados pelo erário público, com o argumento de que foram comprados durante a vigência do seu mandato.
É evidente que, em certos casos (os que não envolvam informação classificada) será lícito que os titulares dos cargos públicos façam cópias de parte da documentação para os seus arquivos, mas os originais, fruto de trabalho público, pago pelo erário público, por parte de titulares de cargos públicos, pertencem ao Estado. E devem ser deixados em condições tais que permitam a sua fácil identificação, classificação, arquivo e recuperação.
Este tipo de procedimentos permitiria conhecer o conteúdo, participantes e decisões tomadas em reuniões políticas (internas ou internacionais) que a posteridade, se não os actuais cidadãos, têm o direito o conhecer. E evitaria igualmente as inúmeras falhas de memória que os políticos revelam, nomeadamente quando se trata de recordar encontros discretos com personalidades de reputação duvidosa que se recordam de ter jantado por três vezes com o ministro X e de este lhes ter prometido tal coisa quando o governante não se recorda de se ter cruzado alguma vez com o indivíduo em causa.
O princípio da total disponibilização de informação passados um número de anos razoável deveria aliás ser alargada a toda a informação do Estado (com a única excepção de documentos classificados por razões de segurança nacional) incluindo, nomeadamente mas não exclusivamente, toda a informação relativa a contratos assinados pelo Estado ou negociações onde este tomou parte, quer se trate de uma PPP rodoviária, da compra de submarinos ou de computadores para a Administração Pública.