O país onde a comida passou a ser um luxo
Sem bens essenciais disponíveis nas prateleiras dos supermercados, com o abastecimento de água e luz racionado, e uma inflação galopante, os venezuelanos saltam refeições e sobrevivem com uma dieta cada vez mais desequilibrada.
Para Yaneidy Guzman e as suas três filhas, Esneidy, Steffany e Fabiana, uma refeição completa é um “luxo” que a família muito raramente se pode conceder. “Todo o dinheiro que ganho vai para a comida”, explica esta venezuelana de Caracas – e mesmo assim, na sua despensa não se encontra mais do que um pacote de arroz, massa, farinha de milho e de trigo, uma embalagem de peixe seco, duas cenouras e duas bananas, uma garrafa de óleo e leite em pó. “Antes, pegava no dinheiro, comprava roupas e outras coisas. Agora, até a comida é um luxo”, conta.
Na casa de Rómulo e Maria Bonalde, a situação é idêntica. “Há uns tempos conseguíamos comprar comida suficiente para 15 dias, mas actualmente só temos o suficiente para cozinhar no próprio dia”, compara o marido. Com a escolha condicionada pelo racionamento imposto pelo Governo, a escassez de produtos disponíveis nos supermercados e a deterioração do poder de compra fruto da inflação, milhões de venezuelanos enfrentam um dilema na hora das refeições.
“É intolerável que haja três milhões de venezuelanos a comer menos de duas vezes por dia. Não podemos aceitar que metade dos nossos cidadãos não comam lacticínios, nem carne, nem ovos”, frisou o deputado da oposição, Carlos Paparoni, na sessão parlamentar que debateu um voto de censura ao ministro da Alimentação, Rodolfo Marco, com vista à sua demissão do Governo. Chamado à Assembleia Nacional para prestar explicações sobre a crise de abastecimento, o ministro, um antigo general, não compareceu. O Presidente Nicolás Maduro reagiu à iniciativa parlamentar garantindo que “ninguém toca no ministro da Alimentação” e garantindo que “a revolução não merecerá a censura de ninguém, muito menos de uma assembleia imoral”.
A Reuters fez uma peregrinação pelos frigoríficos e despensas de várias famílias de Caracas. As fotografias de todos os seus mantimentos reunidos, em cima da mesa, dão uma ideia da situação de precariedade em que sobrevivem. E não é só a comida que falta. Apesar de a capital ter ficado isenta do racionamento no abastecimento eléctrico – no resto do país, há quatro horas por dia sem luz –, os apagões por falhas na rede são frequentes. E como por toda a Venezuela, na vasta região metropolitana de Caracas, com mais de cinco milhões de habitantes, os efeitos da seca fazem-se sentir de forma aguda, levando as famílias a armazenar toda a água possível em tanques e bidões de plástico para compensar o corte nas torneiras.
Com poucos ingredientes disponíveis, luz intermitente e quase nenhuma água, cozinhar é seguramente um desafio.
Além disso, com as importações praticamente congeladas, muitas unidades fabris ficaram sem matérias-primas e – mais preocupante do que isso – muitos centros hospitalares e farmácias deixaram de receber as drogas e os medicamentos, bem como os materiais médico-cirúrgicos de que necessitam para levar a cabo tratamentos como por exemplo quimioterapia.
Para muitas famílias, a gestão doméstica quotidiana tornou-se um exercício de equilibrismo e ilusão – que já não tem só a ver com aquilo que se come todos os dias (as tradicionais arepas de milho, uma espécie de pão, ora com ora sem recheio) como com quantas vezes se come por dia. “Há muito tempo que deixamos de ter uma dieta equilibrada. Quando há almoço, não há jantar; se comemos à noite, já não comemos de manhã”, conta Duglas Sanchez à Reuters.
“O dinheiro que se gastava no pequeno-almoço, almoço e jantar agora só dá para o pequeno-almoço, e muito frugal”, concorda Alida Gonzalez, de 65 anos. Na cozinha, esta matriarca que já não trabalha tem meio quilo de frango, um pacote de arroz, uma garrafa de óleo, quatro bananas e uma manga. “Tenho de ser poupada porque não sei quando vou voltar a comprar qualquer coisa no supermercado”,
Em 2015, o inquérito sobre as Condições de Vida da População (Encovi), realizado por três universidades do país, com 1500 famílias, concluiu que 87% não dispunham de rendimentos suficientes para suportar os custos de alimentação dos respectivos agregados. Segundo o estudo, a maioria das famílias tinha feito várias mudanças na sua dieta, substituindo as proteínas da carne e do peixe pelos hidratos de carbono. “As frutas e verduras desapareceram das listas de compras; as famílias procuram aquilo que mais enche o estômago: 40% do cabaz básico é constituído por farinha de milho, arroz, massa e óleo”, diz o relatório. E 12% da amostra nunca realizava três refeições completas por dia.
Para uma família com cinco pessoas como a de Alida Gonzalez, o valor de um salário mínimo (reajustado a 1 de Maio para os 15.051 bolívares, equivalentes a cerca de 13 euros) representa sensivelmente um quinto do montante gasto no supermercado. O Governo atribui subsídios de alimentação às famílias de menores recursos – um sistema iniciado pelo Presidente Hugo Chávez e que contribuiu para uma melhoria significativa dos hábitos alimentares dos venezuelanos. Fixado nos 18.585 bolívares, ou 16,25 euros, este subsídio revela-se mesmo assim insuficiente perante as oscilações dos preços dos bens alimentares, por causa da inflação galopante (que poderá atingir uns impensáveis 720% este ano, nas projecções do Fundo Monetário Internacional) e também pela incerteza do abastecimento.
“Todos os dias é a mesma cena: as pessoas começam a formar a fila à porta dos mercados às cinco horas da manhã, e ali ficam até às três da tarde. Num dia conseguem comprar farinha, noutro dia trazem manteiga”, explica Jhonny Mendez, um taxista de 58 anos. Conforme explicam vários economistas, no actual contexto de carência da Venezuela, a intervenção para fomentar a procura não produz o resultado esperado na oferta, que está condicionada pela escassez e restrição do abastecimento. Ou seja, com as mexidas no salário mínimo e subsídio de alimentação, há mais consumidores na fila – mas não há mais consumo.
Num artigo para o portal Caracas Chronicles, o economista Carlos Hernández argumenta que o orçamento disponível já se tornou uma minudência na ida ao supermercado. “O que eu aprendi com esta crise é que o dinheiro não serve para nada. Numa ida às compras não se traz o que se quer, traz-se o que há”, escreve. As pessoas compram o que encontram nas prateleiras e que pode ter valor de troca: por exemplo, numa manhã, o “mercal” (mercado regulado pelo Governo) que é o local de compras de Hernández estava a vender duas garrafas de óleo por pessoa e um quilo de leite em pó. Apesar de dispor de óleo em casa, Hernández trouxe as duas garrafas autorizadas (há um esquema de racionamento em vigor, controlado por impressão digital, que não permite a compra do mesmo produto a preço regulado num intervalo menor a duas semanas), que prontamente trocou por sabonete com uma senhora que tinha feito fila num outro supermercado.
A taxa de escassez da Venezuela fez manchetes sucessivas, com notícias a dar conta da inexistência de papel higiénico e fraldas nas prateleiras dos supermercados, ou da impossibilidade de arranjar preservativos. Mas a situação agravou-se e actualmente reporta-se a falta de bens mais essenciais, como o leite. A CNN encontrou Leidys Nanez, mãe de duas crianças e grávida de seis meses, na fila de um dos supermercados do Estado. Depois de na véspera ter voltado para casa de mãos a abanar, ao fim de 12 horas na fila do supermercado, Leidys decidiu tentar a sorte no centro da capital: há duas semanas que os filhos não bebem leite. “Tenho corrido tudo e não há”, explica.
Como aponta a investigadora do Centro de Estudos de Desenvolvimentos (Cendes) da Universidade Central da Venezuela, Marianella Herrera, uma das participantes no estudo Encovi, já começam a ser visíveis as consequências mais dramáticas da “dieta de sobrevivência” imposta pela actual crise alimentar: deficiências imunológicas, aumento das taxas de malnutrição, mortalidade infantil e materna, redução das capacidades individuais e problemas de desenvolvimento das crianças.
Desesperados, os venezuelanos têm saído à rua para protestar – e muitas vezes também para pilhar e roubar.
No domingo passado, seis soldados do Exército venezuelano foram detidos por terem roubado cabras numa quinta próxima da sua base militar, na região de Lara, no centro do país. O incidente foi reportado pelo proprietário da quinta, que explicou à polícia ter presenciado o roubo sem ter interferido por medo de ser atacado pelos soldados, que estavam armados. Os seis militares foram detidos na estrada, e os animais, já mortos, foram apreendidos – justificaram o crime com o facto de a sua base de Forte Manaure estar quase sem comida. “Não nos resta outra alternativa a não ser roubar para comer”, disseram.