Richard Gere safa-se honrosamente como sem-abrigo
Viver à Margem é um filme inteligente sobre os sem-abrigo nova-iorquinos, com um surpreendente Richard Gere a safar-se muito honrosamente.
Merecia francamente melhor sorte esta terceira longa-metragem de Oren Moverman do que esta estreia desamparada depois de andar meses a fio aos tombos pelo mapa da distribuidora. Reflecte não apenas o desatino de quem hoje em dia tem como função fazer os filmes chegar aos espectadores; reflecte, sobretudo, a incapacidade de pensar fora de “caixas” e “gavetas”, de uma chapa quatro que parece sufocar a própria liberdade de filmar. Não é um exclusivo português: mesmo nos EUA, Viver à Margem passou desapercebido, em grande parte precisamente porque convoca uma vedeta de Hollywood para se expor abertamente num filme de espírito independente, “off-Hollywood”. Em França, Vincent Lindon faz de desempregado em A Lei do Mercado e é saudado como um grande actor; em Nova Iorque Richard Gere vai para as ruas pedir esmola, ninguém o reconhece e ninguém liga.
Obviamente a comparação não é linear – são filmes muito diferentes e actores muito diferentes vindos de sistemas muito diferentes – mas não há como negar a sinceridade de Viver à Margem, onde Gere interpreta um sem-abrigo que vai vivendo como pode pelas ruas de Nova Iorque, filmado por Oren Moverman como alguém que se deixou escorregar “para fora” da sociedade. Todo o trabalho de fotografia de Bobby Bukowski e de encenação do realizador vai na direcção de colocar sempre a personagem de Gere do “lado de fora” e o espectador do “lado de dentro”, sempre separados por paredes, janelas, vitrines, montras, portas; a ideia é tornar o actor tão invisível quanto aqueles que está ali a representar, e mostrar como mesmo as melhores intenções daqueles que o querem genuinamente ajudar podem cair muito rapidamente no reforço da desumanização e da humilhação.
É verdade que ainda não é desta que Moverman consegue igualar o resultado da sua estreia na realização, o excelente Mensageiro (2009) que tanto fez para redimir Woody Harrelson; é também verdade que apesar da quietude e da subtileza da sua interpretação, Gere nem sempre consegue convencer inteiramente como sem-abrigo. Sobretudo, fica a ideia que Viver à Margem, na sua busca de empatia e de compreensão, anda demasiado em pezinhos de lã, como se andasse em círculos sem nunca agarrar o boi pelos cornos (a relação entre Gere e a sua filha, interpretada por Jena Malone, nunca se torna realmente na âncora que o filme parece querer fazer dela). Mas é igualmente verdade que o modo como Moverman filma a cidade, e como lhe contrapõe os homens que a atravessam (numa estética que nos fez lembrar a espaços o trabalho de Lionel Rogosin), é algo que só por si justifica a visão de um filme que evita com inteligência muitos lugares-comuns.