Entretenimento, arte ou activismo: como decifrar Beyoncé?
O seu último álbum-visual, Lemonade, tem vindo a provocar um amplo debate onde se tocam as dimensões privadas e políticas da sua carreira, numa obra de múltiplas leituras. Como enquadrar Beyoncé?
O álbum foi lançado três dias depois da morte de Prince, que era o assunto que dominava naturalmente a actualidade. Havia o risco da edição repentina de Lemonade, o sexto álbum de estúdio de Beyoncé, esvaziar-se a partir dessa ocorrência. Mas não foi isso que aconteceu. Nos dias seguintes o seu “álbum-visual” foi amplamente discutido com toda a gente a disparar a sua apreciação.
Para uns constitui uma viagem autobiográfica, história de infidelidade, zanga e reconciliação, à volta da relação com o marido, o rapper Jay-Z, contada a partir da perspectiva de quem se sentiu traída, sendo nesse sentido o seu disco mais revelador. Para outros é, em simultâneo, uma celebração das mulheres afro-americanas e denúncia das desigualdades ainda existentes.
Enquanto os meios de comunicação e a internet debatiam o assunto, o álbum chegava ao primeiro lugar dos tops de vendas de todo o mundo (com destaque para os países que servem de farol nestas coisas, os EUA e Inglaterra) ao mesmo tempo que iniciava a digressão mundial Formation, em Miami, com a generalidade da imprensa rendida.
Este é sem dúvida o seu projecto onde o sucesso popular e a avaliação exigente dos melómanos se parece aproximar mais, embora como é expectável numa celebridade desta dimensão – talvez a maior no actual momento da constelação pop – tudo o que produz gera as reacções mais díspares, da adesão incondicional à aversão visceral.
Do ponto de vista sonoro constituiu uma espécie de galeria pós-pop, com um aglomerado de elementos pertencentes às mais diversas famílias estéticas (R&B, hip-hop, soul, rock, country, electrónicas), criando uma narrativa sónica coesa na sua multiplicidade, para a qual contribuíram nomes como Kendrick Lamar, Jack White, The Weeknd, James Blake, Diplo, Father John Misty, Ezra Koenig ou Jon Brion.
Para o americano Kevin Allred, professor do departamento de Estudos de Género do Centro Rutgers, em Nova Jérsia, que dirige há cinco anos o seminário Politizando Beyoncé, onde disseca questões de negritude, classe, política e género, comparando textos clássicos das ciências sociais com elementos do percurso da cantora, é a sua obra mais fascinante.
“A forma como mistura géneros e formas no filme e no álbum é magnífica”, diz-nos, “com a política a ecoar de maneira poderosa mais uma vez num trabalho da sua autoria, desta vez até mais explicitamente do que no passado. À superfície, por vezes, parece propor-nos elementos que parecem coincidir com algumas normas sociais dominantes, mas na verdade contribui para mudar essas categorias, criando espaço para que possamos imaginar outras formas de estar.”
No centro do mercado onde se comunica para milhões não existe neste momento ninguém a fazer o mesmo que ela. Nem Kanye West, ou Rihanna ou Madonna. Mas ainda assim talvez não fosse expectável que a sua música e vida se tivessem transformado num tema tão debatido quando se pensa em categorias como negritude, género ou política.
“A partir do momento em que existem muitas pessoas que se concentram nela e que desenvolvem uma relação intensa com o que ela faz, passa a constituir um bom exemplo de como é possível pensar uma série de questões a partir do seu percurso”, reflecte a australiana Catherine Strong, socióloga da Universidade RMIT de Melbourne, especialista em música popular, género ou memória. “Independentemente do que as pessoas possam pensar da sua música, ou se ela é genuína ou não, no fim de contas há debates sobre género, raça ou sexualidade no espaço público que talvez nunca tivessem sucedido se não fosse o seu trabalho.”
Tensão entre arte e comércio
Em 2013 já havia conseguido criar um efeito de surpresa, excitando a curiosidade do público, com um álbum homónimo, acompanhado de vídeos. Mas agora foi mais longe. Criou uma obra com diferentes hipóteses de decifração, embora para muita gente continue a ser apenas uma cantora sensual sem atributos artísticos, apenas interessada em gerar receitas.
“Sempre existiu tensão na música popular entre arte e comércio”, começa por nos dizer Catherine Strong. “Toda a música popular faz parte do sistema capitalista, portanto em última instancia o objectivo é fazer dinheiro. Beyoncé sabe-o e é obviamente uma mulher de negócios. Vemos isso, por exemplo, quando lança uma linha de roupa em conjunto com o álbum. Ou na maneira como posiciona o disco, atraindo diferentes tipos de consumidores. As pessoas que estão interessadas nela por ser celebridade intrigam-se por lhes poder transmitir sinais sobre a relação com o marido. E o facto de o álbum ser sobre alguém traído torna tudo isso mais interessante. E ela sabe-o.”
Independentemente do que cada um acha dela existe consenso sobre a forma como detém o controlo sobre o que faz. E nisso, tanto Catherine Strong, com uma relação mais distanciada, e Kevin Allred, mais próximo das suas práticas, concordam. “Ninguém pode dizer que sabe o que lhe vai na cabeça, mas diria que tem consciência que este trabalho iria ter leituras pessoais e politizadas, embora as duas se completem”, defende Kevin Allred. “O interessante é a multiplicidade de leituras e a possibilidade de se cruzarem e ela sabe-o”, argumenta Catherine Strong.
“Ao mesmo tempo que utiliza referências que podem originar leituras biográficas, usa também imagens ou referências (a poesia de Warsan Shire, ou as mães das vítimas dos tiroteios da polícia como Trayvon Martin ou alusões a elementos da cultura afro-americana que não são conhecidos do grande público) que contribuem para que quem quer olhar para o álbum como testamento político o possa fazer também.”
Para Kevin Allred não existe contradição entre ser-se uma celebridade global, obrigada a comunicar para milhões, e poder apresentar-se com complexidade, sem prescindir de abordar temas que geram fricções. “Ela não é a primeira a fazê-lo, inserindo-se numa tradição, onde encontramos também Michael Jackson ou Prince, onde é possível fazer-se álbuns conceituais que, forma directa ou indirecta, contém elementos que nos permitem pensar questões raciais, políticas ou de género.”
No passado, segundo ele, era mais subtil, por questões estratégicas e porque estava subjugada pela indústria. Na actualidade permite-se ser mais livre. “Se analisarmos bem ela aborda os mesmos temas desde o início. A diferença é que agora é mais independente. Emancipou-se da indústria. É verdade que tem a pressão dos admiradores que não quer desiludir, mas já compreendeu que é possível comunicar com eles de forma directa sem prescindir de ser elaborada. É inegável que hoje a sua influência é impressionante e isso aconteceu porque ao longo dos anos foi desenvolvendo uma estratégia de progressiva autonomia, embora comunicar transversalmente para milhões acarrete também alguns paradoxos.”
Para Catherine Strong todas as dimensões que são abordadas na sua obra estão lá para captar as mais diferentes atenções, o que revela um desígnio comercial. Se esse propósito anula a dimensão política do álbum é no entanto outra coisa, esclarece ela. “A importância da música popular muitas vezes deve-se mais ao que as audiências fazem com esses elementos do que com os artistas”, afirma. “Se as pessoas encontram uma forma de se envolverem e posicionarem com questões feministas ou raciais através do que Beyoncé diz ou produz, isso é tão válido como terem adquirido esses conhecimentos na Universidade ou através de quaisquer outras formas de despertar político.”
A maior parte dos admiradores de Beyoncé não a ouve por razões políticas, mas apenas por simples fruição musical. É difícil por isso avaliar até que ponto são afectadas pelos seus posicionamentos. Para Catherine Strong “se as pessoas que a ouvem nunca se interessaram por feminismo ou pelos direitos das minorias é pouco provável que o venham a fazer agora, mas se esse interesse existir, por pouco que seja, ou se simpatizam com algumas dessas causas, então o efeito pode ser um cada vez maior envolvimento com elas e com a própria Beyoncé.”
O americano Kevin Allred insere-se numa tradição teórica que defende que é aquilo que por vezes não levamos muito a sério – como pode acontecer com a música de Beyoncé – que acaba por ter mais impacto em nós. Para ele as grandes discussões sobre negritude, classe ou género não ocorrem em campanhas ou no Congresso americano.
“Se ela não interessa, então porque é que gera emoções tão apaixonadas e díspares?”, interroga. “Seja consciente ou inconscientemente o seu papel político tem impacto nas pessoas, muito mais do que estamos disponíveis para aceitar. Não sei se Lemonade é autobiográfico ou não. Nem me interessa. Mas sei que foca a experiência das mulheres afro-americanas como um todo, as histórias de dor e opressão, no contexto de um sistema que deixou, e continua a deixar, que elas aconteçam.”
No entender de Catherine Strong as mulheres e as minorias tendem a ser representadas de forma estereotipada na música popular. No caso das mulheres negras, duplamente, não só pela condição de mulher, mas também pela cor da pele. “As mulheres são frequentemente representadas de forma sexualizada, mas as mulheres negras são-no de forma diferente das brancas, o que remete para as histórias de escravatura, colonialismo e racismo. Nesse sentido é poderoso que Beyoncé tenha encontrado uma forma de inscrever as mulheres afro-americanas na cultura de massas de uma forma que não é a vulgar ou a dominante.”
Ela encoraja fortemente as mulheres afro-americanas a terem orgulho na sua identidade, diz ela, embora existam limites nessa sua postura: “Há debates infindáveis sobre até que ponto é que alguém que utiliza a sensualidade como factor vendável, acaba por fortalecer ou enfraquecer as mulheres que se identificam com ela e nunca alcançarão esses níveis de sensualidade, e não existem respostas fáceis para essa questão.”
No fim de contas Beyoncé move-se entre vários paradoxos. Ela sabe que opera num mundo especulativo. Tem esse entendimento. E isso já é uma forma de se posicionar. Sabe que não tem outra forma de continuar a desenvolver o seu trabalho senão pertencendo a um mercado e a um sistema de valores do qual depende, mas também se permite criticar, dessa forma talvez contribuindo para a sua transformação, embora com limites. Uma coisa é certa. No momento actual, na cultura de massas onde se movimenta, não existe ninguém a conseguir fazê-lo com o mesmo impacto que ela.
Era previsível que tal viesse a acontecer. Em 2003, quando a entrevistámos, na altura em que lançava o primeiro álbum solitário depois das Destiny’s Child, havia sido envolvida numa polémica por causa das comemorações do 4 de Julho, sendo acusada por sectores conservadores de dançar nos degraus da campa do ex-presidente dos EUA, Ulysses S. Grant, de maneira considerada inapropriada.
Até aí para os mesmos sectores ela representava a rapariga perfeita, capaz de com um sorriso pacificar o mundo à sua volta. “Que posso fazer?”, dizia-nos ela, então. “Algumas pessoas não entendem que posso ser sensual em palco e depois ir à igreja. Não me conhecem e não diferenciam aquilo que faço em palco do resto da minha vida. Em palco sou outra pessoa, gosto da performance, de cantar. É isso, apenas.”
Nessa altura parecia separar com nitidez todas as dimensões da sua actividade. Agora está tudo misturado. Ou assim nos faz acreditar.