Gérard Depardieu, o corrupto de Marseille, chega ao Netflix
O serviço de streaming estreia nesta quinta-feira a sua primeira produção europeia, uma série sobre o poder que não quer ser House of Cards.
Marselha, a primeira cidade aos olhos de muitos que chegam à Europa, é também a porta de entrada na produção original europeia para o Netflix. A aguardada Marseille, a série política com Gérard Depardieu e Benoît Magimel que se estreia esta quinta-feira às 0h01, é uma visão da cidade a partir da corrupção, da ambição e dos jogos de poder autárquicos mas, enfatiza a equipa, é sobretudo uma história de famílias. E não, não é o House of Cards francês.
Depois de uma rodagem de três meses na cidade mediterrânica, parte do elenco e da equipa criativa recosta-se num hotel no centro de Paris. Na rue Saint-Honoré, o Louvre e a Torre Eiffel aqui tão perto, estamos muito, muito longe de Marselha. Mas uma das histórias de Marseille é provavelmente aquela que fica nas entrelinhas dos planos que o realizador e showrunner Florent Siri diz terem de ser cuidadosamente enquadrados porque nunca param de acontecer coisas em Marselha. “É talvez a cidade francesa mais cinegénica. Tem uma luz incrível. Para mim, a personagem principal é a cidade”, diz sobre o lugar que filmou, a convite do produtor Pascal Breton (da Federation Entertainment), como pano de fundo para esta intriga de Dan Franck (co-argumentista de Carlos, de Olivier Assayas) em oito episódios, dos quais realizou metade.
Há toda uma profusão de ficção criminal de e sobre Marselha, todo um imaginário noir sobre a cidade-porto que, como ilustra na perfeição Benoît Magimel em resposta ao PÚBLICO, é “a cidade mais singular de França": "Na fortaleza de Marselha, os canhões estão voltados para o interior da cidade."
Gérard Depardieu, ausente das rondas de imprensa, é autarca há 20 anos e escolhe cuidadosamente o seu sucessor. “Sou um crocodilo”, diz a sua personagem, Robert Taro. O actor – um “monstro de humanidade”, “um pedaço da história do cinema francês”, “alguém sem filtros”, descrevem o outro realizador da série, Thomas Gilou, e a actriz Géraldine Pailhas – é essencial para dar visibilidade à produção, mas “não é a primeira pessoa em que se pensaria para uma série Netflix”, aponta Géraldine, que interpreta a sua mulher. O seu sucessor político é Magimel, ou Lucas Barrès, o delfim traidor que se demarcará de um controverso projecto imobiliário – isto numa cidade que, nos últimos anos de "vida real", conheceu vários casos públicos de corrupção. Uma cidade que, diz Magimel de cigarro electrónico disfarçado de charuto na mão, a sua personagem “quer muito”.
Alargar o espectro
As comparações a House of Cards, a primeira grande produção de sucesso crítico do Netflix, são liminarmente afastadas numa altura em que a crítica francesa já começou a avaliar (de forma fervorosamente negativa) Marseille. House of Cards não é só a série-trunfo do Netflix, é também a série-símbolo da concorrência que o serviço enfrenta desde a sua entrada em França em 2014 – o Canal Plus domina o mercado do video on demand francês e tinha, como aconteceu em países como Portugal (neste caso com o TV Séries, da Nos Lusomundo TV), os direitos da produção original mais premiada do serviço de streaming, que a empresa de Sarandos recuperou para as novas temporadas após uma árdua batalha. Em 2015, o Netflix tinha meio milhão de subscritores em França, abaixo dos 3,3 milhões de um mercado da mesma dimensão como o Reino Unido, onde está há mais tempo e onde as restrições legais à exibição de filmes, por exemplo, são muito menos apertadas.
Marseille é descrita pela imprensa, mesmo pela desiludida, como a série mais aguardada do ano em França. “Tenta aproximar-nos do que são as séries de hoje – feitas no estrangeiro – e afastar-nos do folhetim, da novela que França já sabe fazer”, diz, desassombrada, a jovem actriz francesa Stéphane Caillard (Julia). E “ter alguém com o calibre de Depardieu permite ultrapassar a espécie de snobismo que há entre o cinema e a televisão” em França, estima. Siri vem do cinema (Hostage-Reféns, com Bruce Willis, Inimigos Íntimos ou Cloclo) e por seu turno trouxe aquele a quem chama o seu “alter-ego”, Magimel (fizeram quatro filmes juntos), e o compositor Alexandre Desplat.
Nos últimos anos “houve várias tentativas de sucesso de séries francesas que escolhem autores, actores e guionistas mais conotados com o cinema”, lembra Géraldine Pailhas, sobre a evolução de um mercado no qual o Netflix decidiu seduzir de forma mais convencional. A série surge esta noite nos ecrãs dos subscritores de todo o mundo, mas os dois primeiros episódios serão exibidos no dia 12 no canal de sinal aberto TF1. Um aperitivo que, acompanhado pelo mês de serviço gratuito que o Netflix oferece, pode ir de completar a série à angariação de novos clientes.
Paralelamente, Marselha é o cartão de visita com que o Netflix quer lançar produção europeia no mercado quando já tem na calha títulos britânicos como The Crown (estreia no Outono) e encomendas à Alemanha (Dark), Itália (Suburra) e Espanha (uma série passada nos anos 1920), num total de 12 projectos entre o velho continente e a América Latina. Na maioria dos países em que o serviço de streaming opera, o consumo “é 80% de conteúdos internacionais e cerca de 20% locais”, disse ao PÚBLICO o seu CEO, Ted Sarandos, em Outubro. Agora, como anunciou há dias o co-fundador do Netflix, Reed Hastings, “este é o futuro para o Netflix: produção local, distribuição global”.
Começar por França envia que tipo de mensagem?, perguntamos ao realizador Florent Siri. “É um sinal forte para mostrar ao mundo outras obras e [uma forma] de alargar o nosso espectro”, avalia, passando rapidamente aos números virtualmente esmagadores do Netflix – "85 milhões de espectadores potenciais”, diz sobre o alcance total do serviço de streaming, que não revela as audiências concretas dos seus títulos nos vários mercados. E arregala-se: “Em 2018 serão 200 milhões."
O PÚBLICO viajou a convite do Netflix