Descoberta mais uma estela alentejana com uma enigmática figura ainda por interpretar
A região Oeste de Beja é onde se concentra o maior número deste tipo de monumentos funerários de todo o sudoeste peninsular. Durante o período do Bronze Médio assinalavam necrópoles ou sepulturas específicas.
Primeiro que tudo: o que é uma estela? São lápides de pedra que durante a Idade do Bronze identificavam os enterramentos de chefes guerreiros e religiosos que dominariam as comunidades das pequenas aldeias na planície alentejana. Recentemente, foi identificada mais uma, comprovando que a região alberga um importante património histórico.
Foi o arqueólogo Leite de Vasconcelos o primeiro que identificou este tipo de indicador de necrópoles no sudoeste peninsular, nos finais do século XIX e na freguesia de Santa Vitória, no concelho de Beja. A descoberta das três primeiras estelas ocorreu em 1868, todas no decorrer de trabalhos agrícolas e o seu aparecimento foi desde logo associado a uma sepultura da Idade do Bronze.
Desde então, foram identificadas 31 estelas designadas do tipo alentejano por, maioritariamente, ostentarem uma figura gravada, um ancoriforme (em forma de acha de corte semi-circular), que só se conhece em lápides descobertas na zona Oeste de Beja, Aljustrel, Santiago do Cacém e no Algarve. Em Santa Vitória e no lugar vizinho de Mombeja, apareceram sete das 31 estelas. O objecto ancoriforme é o que aparece representado mais vezes: em 17 do total.
A estela mais recente foi encontrada, em 2013, na Herdade do Monte do Ulmo, em Santa Vitória, e veio revelar a importância das acções de campo realizadas pela Câmara de Beja na divulgação do passado histórico do concelho, onde a presença humana perdura há pelo menos 3500 anos. Este achado, porém, só foi conhecido no ano passado.
O trabalho realizado pelo arqueólogo Miguel Serra deu frutos inesperados quando, no decorrer de uma conferência no Centro Cultural de Santa Vitória, onde foi dado destaque às necrópoles e estelas da Idade do Bronze identificadas nesta zona, um dos que o ouviam percebeu que tinha algo para partilhar. A apresentação do arqueólogo era acompanhada de folhetos explicativos com imagens e textos alusivos, entre outros, à necrópole do Monte do Ulmo, descoberta em 1943, por Manuel Guerreiro Colaço de Brito, proprietário da terra onde foi visto o achado fúnebre no decorrer de trabalhos agrícolas. Nessa altura, o agricultor chamou o arqueólogo Abel Viana ao local para o informar da presença de várias cistas (túmulos da Idade do Bronze) ali surgidas dois anos antes.
Na conferência, o neto do agricultor, Cesário Colaço, proprietário do Monte do Ulmo, escutava os esclarecimentos que Miguel Serra prestava à população de Santa Vitória e folheava o desdobrável com as fotografias da necrópole descoberta pelo seu avô e deu conta do inesperado: Uma das figuras inscritas no documento era igual à que tinha descoberto dois anos antes, e que estava inscrita numa pedra que o arado do seu tractor tinha levantado quando rasgava a terra a 30 centímetros de profundidade.
Aproximou-se do arqueólogo e disse-lhe: “Tenho no meu monte uma pedra com um desenho igual a este” e apontava para a figura ancoriforme. Surpreendido, Miguel Serra deslocou-se ao Monte do Ulmo e “a peça (estela) encontrava-se junto a uma dependência rural, rodeada de alfaias agrícolas obsoletas, encostada a uma parede com a superfície decorada voltada para baixo”, contou ao PÚBLICO o arqueólogo, acrescentado que “imediatamente observou a forma bem nítidad a figura do ancoriforme” gravada numa laje de pedra com 102 centímetros de altura por 38 centímetros de largura e 12 centímetros de espessura.
A estela regressou, por horas, no passado domingo ao Centro Cultural de Santa Vitória, onde decorreu mais uma sessão de esclarecimento no âmbito do Projecto "12 Lugares, 12 Meses, 12 Histórias" que dá continuidade ao trabalho de divulgação sobre a pré-história de Beja, organizado pela autarquia e a empresa de arqueologia Palimpsesto, e com o apoio da União de Freguesias de Santa Vitória e Mombeja.
Cerca de 50 caminhantes e interessados nestas coisas de arqueologia percorreram a pé, debaixo de chuva miudinha, cerca de nove quilómetros pelo interior do território em redor da barragem do Roxo e “onde tudo começou há 3500”. A massa de água “estará a cobrir a maioria dos cemitérios da Idade do Bronze nesta zona”, admite o arqueólogo, frisando que as planícies em redor de Santa Vitória “eram pontuadas por lápides verticais (estelas) que assinalavam locais de enterramento discretos.” Nestas lápides, encontram-se gravados os objectos que “terão sido utilizados por chefes guerreiros e religiosos” que dominariam as comunidades que habitavam em pequenas aldeias na planície, salienta Miguel Serra.
Em Santa Vitória conhecem-se diversos cemitérios da Idade do Bronze Médio (entre 1800 e 1200 a.C), cujas sepulturas designadas como cistas eram formadas por quatro ou mais lajes de pedra enterradas na vertical formando uma caixa sobre a qual se colocava outra de maiores dimensões a servir de tampa.
As sepulturas continham normalmente um único esqueleto e alguns objectos como por exemplo taças, cerâmicas, punhais. Aliás foram taças descobertas em Santa Vitória que “destacaram a freguesia no universo arqueológico peninsular”, lembra Miguel Serra.
Nas estelas eram representados objectos de prestígios que seriam usados pelos elementos mais importantes das comunidades da Idade do Bronze, como espadas, machados, alabardas e outros mais difíceis de interpretar, como a figura conhecida por “ancoriforme”. Em pleno século XXI, “a enigmática figura” à qual tanto arqueólogos portugueses como espanhóis já atribuíram as mais variadas funções, desde objecto religioso até instrumento de corte ou arma de guerra, identitária do chefe guerreiro, continua por interpretar.
Com a descoberta da estela do Monte do Ulmo, volta a colocar-se uma questão de fundo: o que simboliza a figura ancoriforme?