Morreu o escritor e historiador de arte Paulo Varela Gomes

Depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro em 2012, dedicou o resto da sua vida a escrever. Tinha 63 anos.

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Paulo Varela Gomes Miguel Manso

Paulo Varela Gomes, escritor e historiador de arte e da arquitectura, morreu neste sábado de manhã, aos 63 anos, na sua casa de Podentes, concelho de Penela, de um cancro que lhe foi diagnosticado há quatro anos. 

O velório realiza-se este sábado a partir das 19h na capela de Podentes e o funeral sai amanhã à tarde para o cemitério local, depois de uma missa de corpo presente, às 15h30.

Em Maio de 2015, publicou na revista Granta um texto intitulado Morrer é mais difícil do que parece, um raro, impressionante e longo testemunho da sua experiência com a doença, desde o momento em que o cancro, já num grau muito avançado, foi diagnosticado, e os médicos lhe revelaram que teria pouco tempo de vida, até à fase quase terminal.

Nos quatro anos da sua restante vida, Paulo Varela Gomes, professor associado no Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, autor de uma obra de investigação importante no campo da história da arquitectura e da arte (tendo sido também crítico de arquitectura), dedicou-se exclusivamente à literatura e publicou quatro romances e um livro de crónicas, com os quais fez uma entrada fulgurante e muito aclamada na literatura portuguesa contemporânea (Hotel, de 2014, ganhou o prémio do P.E.N. Clube) O primeiro intitulou-se O Verão de 2012 e tinha uma óbvia dimensão autobiográfica; o último chama-se Passos Perdidos, foi publicado em Fevereiro deste ano, e é, como os anteriores, um romance onde a ficção se tece com as ideias e a especulação.

Mas nem só da escrita literária e historiográfica se fez o percurso público intelectual de Paulo Varela Gomes. Durante os seus anos de estudante universitário, na Faculdade de Letras de Lisboa (onde fez o curso de História, tendo-o terminado em 1978), e depois como professor no ensino secundário, teve uma actividade política muito forte, enquanto militante do Partido Comunista. Mas ainda nos anos 80 afasta-se e foi um dos fundadores, com Miguel Portas, do movimento Política XXI.

Nalgumas das crónicas que escreveu para o PÚBLICO mostrou que as suas posições face ao seu tempo eram completamente heterodoxas em relação ao mainstream político, de qualquer campo ideológico, e não eram já compatíveis com qualquer actividade política pragmática e imediata. Tendo sido delegado da Fundação Oriente, em Goa, por duas vezes, de 1996 a 1998 e de 2007 a 2009, essa sua experiência indiana, como se pode perceber sobretudo nas suas crónicas mas também no seu romance Era Uma Vez em Goa (2015) foi muito importante e decisiva nalgumas das suas inflexões intelectuais. Ele, que tinha escrito imensos textos, no Blitz, no JL, no Expresso sobre os fenómenos da cultura de massas e da vida urbana, no regresso da Índia exilou-se no campo e voltou as costas à cidade.

 

Os seus últimos anos foram passados entre a Universidade de Coimbra e a sua quinta perto de Podentes, concelho de Penela. Da Universidade despediu-se no final de 2012, devido à doença, com uma Última Lição pública que teve por título Do Sublime em Arquitectura. A propósito dessa lição, o seu colega Jorge Figueira escreveu no PÚBLICO um elogio do professor Paulo Varela Gomes, classificando-o como um enfant terrible e um troublemaker. Esta condição não impediu que Paulo Varela Gomes fosse um autor de enorme prestígio e muito reconhecido na comunidade científica de que fazia parte, e um professor que era seguido pelos alunos com uma enorme admiração.

Livro de contos inédito

O crítico de arquitectura do PÚBLICO, Jorge Figueira, recebeu a notícia no Brasil. Ao telefone, já dentro do avião para regressar a Portugal, o académico da Universidade de Coimbra lembrou Paulo Varela Gomes - que conheceu há muito tempo, ainda estudante de arquitectura, antes de terem sido colegas em Coimbra - e também as coisas que este escrevia nos jornais na década de 1980. “Seja na escrita dele, seja nas conversas, seja nas aulas, o Paulo era uma figura brilhante: era assertivo, era provocador, era crítico, era também um tipo afectivo, mas era duro", diz Joreg Figueira. "Ele era de facto uma figura muito complexa, mas que conseguia cativar os estudantes, cativar quem lia sobre arquitectura e quem também faz história da arquitectura."

Paulo Varela Gomes transformou a história da arquitectura em qualquer coisa que podia ser comunicável e que podia ser divulgada. Tem também "esse papel importante, não só de historiador, como de crítico e divulgador". Mas o que Jorge Figueira considera mais “espantoso”  é que ele era “muito ideológico, muito radical, muito político e ao mesmo tempo era um espírito livre". Embora "tivesse essa matriz política muito vincada, isso não o impedia, pelo contrário, de olhar para o mundo de uma maneira muito livre", observa, salientando ainda a capacidade de Varela Gomes de "fazer conexões com a cultura americana, anglo-saxónica eportuguesa, o que é muito raro.”

Além disso, era “um intelectual e um erudito que tinha cultura visual, ou seja, que compreendia a arquitectura e que entrou dentro da arquitectura", diz Jorge Figueira. "É pouco vulgar no nosso meio, e se calhar em qualquer meio, que historiadores e intelectuais ou escritores entrem da forma como ele entrou por dentro da arquitectura, e isso marcou muito as últimas décadas do debate em Portugal". E acrescenta: "Era um espírito muito rápido e acutilante, para o qual tínhamos de estar sempre preparados, ele desafiava muito as pessoas. E mesmo com as contradições que eventualmente surgiam, a sua inteligência e a sua vontade de fazer as coisas avançar era cativante, e isso foi sentido por muita gente que o conheceu ou com quem ele trabalhou.” 

O escritor Mário de Carvalho perdeu Paulo Varela Gomes de vista há muitos anos, desde o final dos anos 80. “Desde essa altura nunca mais o vi”, conta ao PÚBLICO. No entanto tem dele recordações e memórias muito gratas. Estiveram muito próximos nessa década porque estavam ligados a um grupo chamado Quatro Elementos Editores, que organizou quatro volumes temáticos: Mar, Peste, Eldorado e Ruínas. “A ideia que tenho do Paulo Varela Gomes da altura é que era uma pessoa de uma extrema generosidade, talento e coragem. Era um gosto ouvi-lo. Era uma pessoa que se exprimia muitíssimo bem, com muitíssimo brilho e uma cultura vastíssima.” O escritor recorda ainda que, "na altura em que começou a haver problemas e dificuldades dentro do Partido Comunista", partilhou com Paulo Varela Gomes "alguns pontos de vista críticos" e que este,  "sempre com a sua generosidade, mas também com uma análise crítica das coisas", estava então "muito dividido". A sua morte, mesmo esperada, "foi um choque", diz Mário de Carvalho.

A editora Bárbara Bulhosa, em trânsito da Colômbia para Portugal, soube da morte do seu autor em viagem. “É muito difícil falar sobre isto. O Paulo tornou-se um autor para sobreviver à doença e eu fui a feliz contemplada da escolha dele. E durante muito tempo estar a publicar e a ter reconhecimento foi importante para se manter vivo. Ele chegou a dizer-me isto. Por isso não era uma relação normal entre um escritor e um editor. Desde sempre soube que ele estava a morrer”, lamenta a editora da Tinta-da-China, ao telefone do aeroporto de Madrid. Bárbara Bulhosa disse ao PÚBLICO que tem um livro inédito de contos de Paulo Varela Gomes para publicar, e que o romance Hotel terá em breve edição brasileira.

Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, manifestou este sábado o seu pesar pela morte de Paulo Varela Gomes. "Destacado historiador da arte e da arquitetura, cronista, escreveu nos últimos anos sobre Goa, sobre a vida no campo, e revelou-se também como romancista idiossincrático, autobiográfico e especulativo", lê-se no site da Presidência da República, numa nota em que o autor é ainda lembrado como "cidadão politicamente empenhado" e que assumiu "desassombradamente a sua doença terminal".

"Aprendi muito com ele"

Luís Filipe Castro Mendes conheceu o futuro historiador de arte e escritor quando ambos frequentavam a Universidade de Lisboa e participavam nas lutas estudantis do início dos anos 70, mas foi na Índia, onde esteve colocado como embaixador, que o actual ministro da Cultura pôde estreitar a sua amizade com Paulo Varela Gomes, que em 2007 assumia pela segunda vez a função de delegado da Fundação Oriente em Goa.

“Era um notável historiador de arte, e alguém que pensava a relação da Europa com o resto do mundo, e de Portugal com o Oriente”, disse o ministro ao PÚBLICO, lembrando ainda a “série extraordinária de filmes” que Varela Gomes fez para a RTP sobre a presença portuguesa na Índia e noutros países orientais.

“Perdi um grande amigo, com quem aprendi muito”, acrescentou Castro Mendes, referindo ainda o modo como Varela Gomes, que “adiara sempre a escrita”, começou a escrever “quando se confrontou com a morte iminente” e publicou “coisas extraordinárias”, entre as quais destaca o romance Hotel (2014), que considera o seu melhor livro e uma obra “absolutamente inovadora na literatura portuguesa”. Mas também realça “o testemunho terrível” de Verão de 2012 (2013) ou a “dureza, sinceridade e lucidez” do texto que Varela Gomes publicou na revista Granta em 2015: Morrer é mais difícil do que parece.

“É admirável como produziu no final da vida uma obra literária inovadora e que irá ficar”, observa o ministro e poeta Luís Filipe Castro Mendes, que pensa ainda “na quantidade de livros que podiam ter vindo” de alguém que “em quatro anos escreveu quatro grandes romances e um importante volume de crónicas, Ouro e Cinza, com textos muito lúcidos”.

Paulo Varela Gomes “era um homem obviamente de esquerda, mas muito heterodoxo e nada politicamente correcto”, descreve Castro Mendes, lembrando que o próprio se definia como “comunista patriota”. No dia em que lamenta a perda do amigo, o ministro quis ainda prestar homenagem à mulher de Paulo Varela Gomes, Patrícia Vieira, “que o acompanhou e apoiou até ao fim de uma maneira extraordinária, como nunca vi”.  

Se nestes seus últimos anos de vida, a faceta mais pública de Varela Gomes foi a de escritor e cronista, “a história de arte, e sobretudo a história da arquitectura”, que ensinou na Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, “foi sempre uma dimensão central” do seu pensamento, realça António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). “Era um homem de inteligência rara, um espírito livre, e uma pessoa que aliava à qualidade intelectual a qualidade humana”, diz Pimentel, acrescentando que foi amigo de Paulo Varela Gomes e teve “o privilégio de o ter conhecido”. E é mesmo “privilégio” que quer dizer: “É nestes momentos que acho que vale a pena viver por algumas pessoas com quem nos cruzamos, e se este é um dia de perda irreparável, também penso na riqueza de ele ter existido”.  

“Como historiador da arquitectura, é de um brilho intelectual enorme: fez uma história da arquitectura portuguesa percebendo o que nela havia de grande e de diferente, em vez de procurar o que era adaptação do paradigma internacional, mas sem nenhum provincianismo”, diz o director do MNAA, que vê em Varela Gomes o autor mais importante da geração que sucedeu à do teórico norte-americano George Kubler, com os seus estudos sobre a “arquitectura chã” portuguesa do final do Renascimento e do início do barroco.

Destacando os seus dotes de “comunicador excepcional”, Pimentel diz que Varela Gomes, a ter vivido no século XVI ou XVII, “teria sido um jesuíta evangelizador”, porque “era alguém que fazia prosélitos por onde quer que passasse”. Uma qualidade que cativava os seus alunos. “Seguiam-no como a um captain, my captain”, garante o amigo, citando o poema de Walt Whitman e aludindo ao professor interpretado por Robin Williams em O Clube dos Poetas Mortos. “Quando o Paulo ia de férias com a Patrícia”, conta Pimentel, “nunca faltavam voluntários, entre os alunos, para ficarem a tomar conta dos cães que tinham na quinta”.

Convencido de que os anos passados na Índia tiveram uma influência decisiva para Varela Gomes, o director do MNAA vê-o como “uma pessoa muito sempre à procura do seu lugar, mas muito generosa, uma personagem assim entre o jesuíta do século XVI e um Alexandre Herculano ou um Antero de Quental”.

 

 

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