As vidas enterradas de Tennessee Williams
Continuando na sua exploração da obra de Tennessee Williams, Jorge Silva Melo estreia esta quarta-feira Jardim Zoológico de Vidro no Teatro da Politécnica. Uma peça em que nem os vencedores deixam de ser derrotados.
Este Jardim Zoológico de Vidro não fazia parte dos planos de meter as mãos na obra de Tennesse Williams. Jorge Silva Melo tinha pensado nas peças de grande elenco para grandes teatros, Gata em Telhado de Zinco Quente (2014, Teatro Viriato/ CCB / São João), Doce Pássaro da Juventude (2015, São Luiz / São João) e A Noite da Iguana (a estrear em 2017), uma vez que na altura a saída iminente do Teatro da Politécnica parecia uma fatídica certeza para os Artistas Unidos. Pois durante a digressão de Gata... as circunstâncias alteraram-se, a presença na Politécnica foi prolongada e, com a continuidade da regular apresentação do trabalho da companhia na sala, abriu-se espaço para uma peça de escala mais íntima com os actores Isabel Munoz Cardoso, João Pedro Mamede, José Mata e Vânia Rodrigues.
A atracção de Jardim Zoológico de Vidro (peça traduzida por José Miguel Silva) era demasiado evidente para Silva Melo deixar passar a oportunidade. Tendo sido inicialmente escrito por Tennesse Wlliams para o grande ecrã, o texto transformar-se-ia numa peça de teatro depois de rejeitado por Hollywood. “Hollywood não quis porque era com gente muito pobre e falhada”, esclarece o encenador, com uma conhecida fraqueza por estas personagens varridas constantemente para as margens da sociedade e muitas vezes esquecidas pelo teatro. E é por isso mesmo, aliás, que Silva Melo dispensa a habitual tradução portuguesa que titula Jardim Zoológico de Cristal, defendendo que esta gente que passa pelo palco é demasiado pobre para ter sequer visto um cristal na vida – quanto mais para se dar ao luxo de coleccionar animais desse material. “É vidro, são bichinhos de vidro”, defende.
Considerada a mais autobiográfica das peças de Tennessee Williams, Jardim Zoológico de Vidro (em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, até 4 de Junho) entra pela casa da família Wingfield dentro e tem em Tom uma extensão pouco dissimulada do autor – o seu verdadeiro nome próprio era Thomas e também ele trabalhou num armazém de calçado, enquanto escrevia contos e novelas para revistas literárias. Em cena, Tom é aquele que garante o sustento da família – que inclui ainda a mãe e a irmã aleijada –, que foge todas as noites de casa para alegadamente se enfiar no cinema (para onde vão as pessoas delegando nas personagens a vida com que sonham) e em quem a mãe deposita todas as esperanças não apenas para pagar as contas mas também para encontrar um noivo para a irmã.
Em todos eles, mesmo no amigo Jim, que Tom convida para cortejar a irmã e ser cortejado pela família, há uma ideia de prisão permanente. Cada um enrodilhado numa vida de desesperança, à qual Tom tenta escapar-se. Jim, única personagem que Tennesse Williams apresenta como realista, um crente no sonho americano e que investe tudo nessa ideia de prosperidade futura, surge aos olhos do encenador, ainda assim, como uma figura “mais frágil do que possa parecer, um homem que está a cicatrizar do falhanço, mas convencido de que vai vencer”. “É um tipo que se inscreveu na ‘igreja maná’ e quer acreditar, mas não acredita tanto como isso.” No seu caso, vencer passa por subir na folha salarial, casar com uma rapariga perfeita e viver uma outra prisão dentro de uma ideia feita do que significava alguém cumprir-se como vencedor na América dos anos 40.
Para Tom, vencer passa antes por fugir àquela casa. Daí que Silva Melo entenda Jardim Zoológico como uma peça contaminada pelo remorso. Tal como o autor deixou para trás a sua mãe e a sua irmã doente, fugindo para Hollywood e depois para Nova Iorque, também Tom parte, revivendo uma possível culpa de Williams. Mas neste zoom desencantado sobre vencedores e derrotados, em que até os escapes parecem uma coisa soturna e um pontapé para outro buraco, corre toda uma corrente da literatura norte-americana que Silva Melo identifica em Faulkner e em Thomas Wolfe. Em especial, de Wolfe, o livro Look Homeward Angel, um olhar na direcção de casa que Williams venerava e que aqui também emprega em jeito de analepse. O clássico de Wolfe tinha um subtítulo: A Story of the Buried Life – uma história da vida enterrada.