Como os pozinhos das estrelas acabaram no fundo dos oceanos da Terra
Estamos ligados à vida e morte das estrelas. Nelas formou-se maior parte dos elementos químicos, como o cálcio dos ossos. Sem o Sol não havia vida. As suas explosões perto de mais da Terra terão causado extinções. Há novas provas deste fogo-de-artifício pelas nossas bandas, quando já havia humanos.
As estrelas chegam ao fim da vida de várias maneiras. Depende da massa que têm. Estrelas bastante maiores do que o Sol (a partir de oito massas) terminam a vida de forma cataclísmica: explodem e surge uma supernova, que originará ou uma estrela de neutrões ou um buraco negro. Enquanto o núcleo desaba sobre si próprio, estas estrelas supermaciças explodem violentamente as camadas exteriores e, em segundos apenas, libertam quantidades de energia comparáveis às emitidas pelo Sol durante 1000 milhões de anos. O fim da vida de uma estrela, pequena ou grande, aproxima-se quando ela consumiu todo o hidrogénio em reacções nucleares, transformando-o em hélio, e nas fases finais produz uma sucessão de elementos químicos mais pesados, como carbono e oxigénio. Mas é nas estrelas supermaciças que é criada a maioria dos elementos pesados, do oxigénio ao ferro, passando pelo sódio, o potássio e o cálcio; e que elementos ainda mais pesados, como o chumbo, o ouro e o urânio, são sintetizados já durante a sua explosão em supernovas. Sabe-se que perto da Terra explodiram várias estrelas. Terão as suas cinzas chegado até ao nosso planeta?
É precisamente sobre a morte de estrelas na vizinhança do nosso sistema solar, mas uma distância relativamente segura, e a chegada à Terra de alguns dos seus restos mortais que se centram dois artigos científicos recentes na revista Nature. Um deles é de uma equipa internacional de que faz parte o astrofísico português Miguel Avillez, da Universidade de Évora, e que calculou há quanto tempo ocorreram as explosões de estrelas mais perto da Terra. Aconteceram, concluíram, só há uns dois milhões de anos. Andavam já na Terra os primeiros humanos (do género Homo, mais exactamente o Homo habilis), que um dia viriam a desembocar em nós — ainda que eles tivessem surgido não muito antes dessas explosões, há 2,8 milhões de anos em África.
Mais: no artigo da equipa a que pertence Miguel Avillez, assinado em primeiro lugar por Dieter Breitschwerdt, do Instituto de tecnologia de Berlim (Alemanha), esse fogo-de-artifício estelar é relacionado com depósitos de um tipo (isótopo) ferro encontrado no fundo do mar. É o ferro-60, produzido apenas nas explosões de estrelas.
Estamos na Bolha Local
Mas esta equipa não se ficou pelas duas supernovas mais próximas da Terra e olhou para outras na nossa vizinhança. Todas originaram a chamada Bolha Local. E o que é isto?
A Bolha Local é uma cavidade de gases quentes e rarefeitos, delimitada por uma “casca” de hidrogénio, cuja descoberta remonta à década de 1970 através da detecção de uma grande mancha de raios X. O nosso sistema solar está imerso nesta cavidade de gases rarefeitos. A formação desta bolha foi possível porque há enxames de estrelas que, no seu movimento em torno do centro da nossa galáxia, passam perto no nosso sistema solar. “E, à medida que várias estrelas [dessas] foram explodindo, criaram essa cavidade, que foi aumentando de tamanho quando novas estrelas foram explodindo”, diz-nos Miguel Avillez.
A Bolha Local foi criada apenas nos últimos 14 milhões de anos, pelo que é muito mais recente do que o nosso sistema solar. O Sol formou-se há cerca de 5000 milhões de anos e a Terra há uns 4600 milhões de anos. O disco de poeiras e gases onde nasceu o nosso sistema solar continha elementos químicos fabricados antes noutras estrelas, que no fim da vida os atiraram para o espaço, sendo assim reciclados. O cálcio que temos nos ossos veio de lá, tal como o ferro que nos corre no sangue. Ou o ouro que tanto apreciamos. Estamos intimamente ligados à vida e à morte das estrelas. Nos três primeiros minutos após o Big Bang, foram criados o hidrogénio e o hélio e alguns vestígios de lítio e berílio. Os outros elementos químicos foram cozinhados nas estrelas.
Sublinhe-se que o ferro-60 da altura da formação da Terra já desapareceu há muito tempo, uma vez que tem uma meia-vida de 2,6 milhões de anos, desintegrando-se, por isso o que agora se detecta cá teve de vir de explosões de estrelas recentes.
Diga-se ainda que o Sol vai a meio da vida e que o seu fim será espectacular mas não tão violento como o de uma supernova. Estrelas não muito grandes, como o Sol, primeiro incham, tornando-se gigantes vermelhas. Depois vão expelindo aos soluços as camadas exteriores. Acabam como um “caroço”, que passa a chamar-se “anã branca”. Nessa altura, a Terra, se ainda existir como a conhecemos, desaparecerá.
“A Bolha Local, a cavidade onde reside o sistema solar e outras estrelas, foi provocada pela explosão de 17 estrelas nos últimos 14 milhões de anos”, especifica Miguel Avillez, que já tinha chegado a esta conclusão em investigações anteriores. “Essas estrelas continuaram a mover-se e saíram da cavidade de gás rarefeito e estão agora na região da associação [enxame] de estrelas Escorpião-Centauro”, diz ainda. “O artigo que publicamos na Nature demonstra que a assinatura dessas explosões estelares está no fundo do mar”, acrescenta. “Como o ferro-60 se forma unicamente em supernovas, quando aparece no fundo do mar teve de vir de uma estrela que explodiu.”
Ora as suspeitas da ligação entre a explosão de estrelas perto da Terra e os depósitos de ferro-60 no mar remontam aos anos de 1990. Em meados dessa década, foi demonstrado que elementos químicos resultantes de explosões de estrelas relativamente próximas de nós poderiam ser transportados e depositados no nosso planeta, explica Adrian Melott, da Universidade do Kansas (EUA), num comentário aos dois artigos na Nature.
E em 1999 a equipa de Klaus Knie, da Universidade Técnica de Munique (Alemanha), detectou pela primeira vez ferro-60 em crostas ferromanganesíferas no mar profundo. Estas crostas são películas que têm ferro e manganês, bem como cobalto e níquel, e que se vão depositando nas rochas a uma taxa de crescimento conhecida (2,5 milímetros por milhão de anos, no mínimo), formando ao longo de milhões de anos crostas que parecem tapetes.
Em 2004, a equipa de Klaus Knie voltou a analisar amostras de uma crosta ferromanganesífera, recolhida no Pacífico a 4830 metros de profundidade. Os cientistas removeram 28 camadas dessa crosta, que cobriam um período temporal desde o presente até 13 milhões de anos. As medições indicaram um “aumento significativo” de ferro-60 em três camadas depositadas há cerca 2,8 milhões de anos, o que era compatível com a explosão de uma estrela em supernova a 100 anos-luz de distância de nós, relatava então equipa de Klaus Knie na revista Physical Review Letters. Mas encontraram-se registos de outras explosões ao longo desses 13 milhões de anos.
No outro artigo recente na Nature, de Anton Wallner, da Universidade Nacional Australiana, e colegas, alargam-se precisamente os registos conhecidos de ferro-60. Esta equipa analisou testemunhos de sedimentos, crostas ferromanganesíferas e nódulos polimetálicos (concreções esféricas também ricas ferro, manganês, níquel e cobalto), todos recolhidos no Atlântico, Pacífico e Índico, e que abrangem os últimos 11 milhões de anos. Verificou-se que a presença de ferro-60 é global no planeta, durante vários milhões de anos e relativa a diversas explosões de estrelas.
Segundo este trabalho, fluxos de ferro-60 interestelar chegaram à Terra em dois períodos distintos — entre há 1,5 e 3,2 milhões de anos, e entre 6,5 e 8,7 milhões de anos, lê-se no artigo da equipa de Anton Wallner. “Os nossos resultados indicam a ocorrência de múltiplas supernovas e eventos de estrelas supermaciças nos últimos dez milhões de anos a distâncias até 100 parsecs [326 anos-luz, o quem termos astronómicos é na vizinhança da Terra].”
Do mar para o cosmos
Agora, a equipa de Miguel Avillez desenvolveu modelos teóricos para a massa das estrelas que se transformaram em supernovas, as suas trajectórias na Via Láctea e o transporte do ferro-60 até à Terra e ao fundo do mar. Graças ao uso de supercomputadores em Évora e Berlim, os cientistas calcularam onde e há quanto tempo explodiram recentemente estrelas na vizinhança da Terra, um trabalho que vem no seguimento de outros do astrofísico português, já desde 2002, sobre a história da Bolha Local. “Para ligar a Bolha Local à quantidade de ferro-60 descoberta numa crosta ferromanganesífera no mar profundo [a tal analisada pela equipa de Klaus Knie em 2004], era necessário determinar as distâncias das supernovas”, explica o artigo desta equipa.
O que os cientistas concluíram foi que a explosão mais próxima de nós foi há 2,3 milhões de anos, de uma estrela com 9,2 massas do Sol. E a segunda mais próxima foi ainda há menos tempo — há 1,5 milhões de anos, de uma estrela com 8,8 massas solares. Genericamente, estavam ambas a cerca de 300 anos-luz de distância. “Essas estrelas correspondem a um pico grande no ferro-60, medido no fundo do oceano. O que quer dizer que estavam bastante próximas do sistema solar. Não houve grande dispersão do ferro-60”, diz-nos Miguel Avillez. “As restantes supernovas, que formaram a Bolha Local, contribuíram em menor extensão, porque ocorreram a distâncias maiores e há mais tempo”, acrescenta o artigo.
Portanto, as conclusões do trabalho de Miguel Avillez e colegas para as explosões de estrelas batem certo com os vestígios acumulados de ferro-60 no fundo dos oceanos. Até porque a viagem deste elemento desde essas explosões das supernovas até nós pode levar umas centenas de milhares de anos. “Demora até esse material chegar à Terra, entrar na atmosfera e se depositar no solo”, explica o astrofísico, acrescentando ainda que a explosão mais recente foi só há 600 mil anos.
Na última sexta-feira, na revista Science, outra equipa revelou que, sobre a Terra, continua a cair uma chuva de ferro-60. Esta detecção — de apenas 15 núcleos deste elemento, ao longo dos 17 anos em que a sonda Advanced Composition Explorer está no espaço — é mais uma peça que indica que pelo menos duas estrelas morreram nas nossas bandas há poucos milhões de anos, segundo os resultados da equipa de Walter Binns, da Universidade de Washington em Saint Louis, EUA.
Mas todas estas explosões aconteceram para lá daquilo que é considerada a “zona da morte”, caso contrário teria havido consequências devastadoras na Terra devido à radiação emitida pelas estrelas, como extinções em massa — ou seja, aconteceram para lá dos 30 anos-luz de distância. “Nos últimos 500 milhões de anos, testemunhámos extinções em massa de intensidade variável. Estas incluem o grande evento no final do Cretácico que varreu os dinossauros e metade das espécies do planeta há 66 milhões de anos [mas que está ligada à queda de um meteorito], e um evento moderado no final do período Jurássico há 145 milhões de anos”, lembrou Adrian Melott no comentário aos dois artigos na Nature. “Em 1954, foi sugerido que uma supernova nas proximidades causou uma grande extinção em massa há cerca de 250 milhões de anos (no fim do Pérmico) e que afectou mais de 90% das espécies da Terra.”
Tal ausência de efeitos catastróficos das 17 supernovas da Bolha Local nos últimos 14 milhões de anos não significa, porém, que essas explosões não tenham tido qualquer influência na Terra. Já muito se teorizou sobre isso. Há quem ponha a hipótese de que os raios cósmicos emitidos pelas supernovas, ao interagirem com a nossa atmosfera, aumentam a formação de nuvens e provocam assim uma descida da temperatura no planeta.
O certo é que as explosões dos últimos dois a três milhões de anos coincidem com o início de um período de arrefecimento do planeta, e pensa-se que essas mudanças climáticas influenciaram a evolução humana. Em África, o clima ficou mais árido, o que terá obrigado os humanos a adaptarem-se e espalharem-se para outros locais do planeta. Por isso, esta viagem científica aos pozinhos de estrelas no fundo do mar contribui para sabermos mais sobre o nosso lugarejo cósmico, bem como sobre a nossa evolução e a do clima. “Grandes passos na evolução, considerados indispensáveis para o desenvolvimento do Homo sapiens, podem ter sido desencadeados por um evento cósmico violento há três milhões de anos e alguns milhões de vezes mais distante de nós do que o nosso Sol”, resume Klaus Knie no site do seu grupo.
“É agora possível fazer perguntas-chave com alguma precisão”, remata Adrian Melott. “Por exemplo, será que estas supernovas tiveram efeitos substanciais no clima da Terra e nos organismos — e talvez até um papel na evolução humana?” Como disse Carl Sagan no seu famoso livro Cosmos, “nós somos, no mais profundo sentido, filhos do cosmos”.