Pré-publicação do conto O Operário de Luís Afonso

O livro de contos O Quadro da Mulher Sentada a Olhar para o Ar com Cara de Parva e Outras Histórias, de Luís Afonso (ed. Abysmo) vai ser apresentado esta sexta-feira, às 19h00, no bar Irreal (rua do Poço dos Negros, 59 em Lisboa) pelo escritor Rui Cardoso Martins.

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Luís Afonso António Carrapato
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A capa e a contracapa do livro. Uma fotografia de Bruno Portela numa encenação com o actor Pedro Lamares

O Operário

Eu e a Cecília vivemos juntos mais de vinte anos, desde o nosso tempo de universidade, e posso dizer que passei com ela os meus melhores momentos. De entre o nosso vasto grupo de amigos, talvez nós dois fôssemos mesmo os melhores amigos um do outro.

Não tínhamos segredos, falávamos de tudo. Do meu trabalho (sou professor de filosofia), do trabalho dela (é investigadora na área da bioquímica), dos projectos de vida comuns, da sociedade em geral e de política, sobretudo de política, que era o nosso tema favorito.

Conhecemo-nos numa manifestação. Mais concretamente numa manifestação de estudantes contra as más condições da cantina universitária, onde nos serviam pouca e péssima comida. Estávamos concentrados em frente da reitoria, a exigir que o reitor nos recebesse. Na primeira fila, destacavam–se alguns estudantes que tinham ido parar ao hospital, por causa de mais uma intoxicação alimentar provocada de certeza pelos croquetes que nos serviam à segunda–feira com os restos da carne de sexta, com cartazes alusivos ao facto. E foi lá no meio deles que vi a Cecília. Empunhava um cartaz que dizia «gostava de emagrecer por opção».

Achei piada e meti-me com ela. A manifestação foi numa terça, salvo erro, e no sábado a rapariga já estava a viver na minha casa, um apartamento bem localizado, que os meus pais me compraram quando cheguei ao ensino superior. Começámos uma vida a dois, mas nela cabia mais gente. Tínhamos sempre a casa cheia, pela noite dentro, em acaloradas discussões políticas, nas quais delineávamos as estratégias das próximas lutas.

Organizávamos acções de vários tipos: vigílias, ocupações de instalações universitárias, greves às aulas, levantamentos de rancho na cantina, concertos solidários a favor do povo da Palestina ou de qualquer país sob ameaça americana, etc. Recordo -me perfeitamente de haver semanas em que passávamos mais tempo em protesto à porta da embaixada dos Estados Unidos ou de Israel do que em casa. Satisfazíamo-nos assim.

Lá por isso não deixámos de cumprir minimamente as nossas obrigações estudantis, com o objectivo de concluir os cursos. A Cecília, que sempre teve uma capacidade fora do normal, licenciou-se dois anos antes de mim e iniciou logo o mestrado. O que foi bom, porque continuámos a almoçar juntos na cantina, até eu, por fim, terminar a minha licenciatura, com uma média reles. Consegui um lugar de professor numa escola afastada da cidade, o que me obrigava a quase três horas diárias nos transportes públicos, enquanto a minha companheira se doutorava e se tornava uma investigadora de renome.

Não consigo perceber como passou o tempo, mas chegámos aos quarentas a viver no mesmo apartamento. Sem filhos, porque nunca nos ocorreu que os pudéssemos ter, a nossa relação manteve-se uma relação. Tivemos os nossos altos e baixos, fruto de muitas peripécias que não vale a pena agora contar, mas continuámos juntos. Ela à frente do seu centro de investigação, eu finalmente a dar aulas num liceu perto de casa.

A partir de determinado momento, não sei precisar quando, apoderou -se de mim uma angústia que me veio atrapalhar a vida. Faltava-me o ar, tinha ataques de ansiedade, mal dormia. Como não havia nada que objectivamente me estivesse a ameaçar no presente ou no futuro (nem me podia queixar da falta de dinheiro; os meus falecidos pais tinham-me deixado uma herança respeitável), deu-me para ficar obcecado com a felicidade da Cecília, a qual, no fundo, era a condição para eu conseguir ser feliz.

Pensava se ela se sentiria bem comigo, se não lhe faltaria alguma coisa, se a nossa rotina não a cansaria. Tinha medo de a perder. Esforcei-me ao máximo por agradar-lhe, desde ir jantar fora com frequência, a passar fins-de-semana em hotéis de charme ou até a viajar de férias para destinos quentes. Fui-me apercebendo de que não a contentava deste modo. Ela não gostava por aí além de jantar fora, achava patéticos os hotéis de charme para onde íamos e os destinos com sol e praia, que era para onde eu a levava, aborreciam-na imenso. Satisfazer uma mulher inteligente como a Cecília não é fácil; as minhas dúvidas e receios foram aumentando.

Aconteceu um dia eu ter encontrado na rua um antigo colega de faculdade, o Alberto-não -sei -quê, que me cumprimentou sem deter o passo. Acompanhei-o uns quantos quarteirões, a querer pôr a conversa em dia. Fiquei a saber a custo que é professor universitário e ensaísta, pelos vistos uma referência do pensamento contemporâneo, e que estava cheio de pressa porque eram horas de ir buscar o seu operário ao cinema.

Que história é essa de teres um operário, perguntei-lhe eu, com o sacana a tentar desembaraçar-se de mim, sem disfarçar o ar de fastio. Por sorte, quando chegámos à porta do cinema a sessão ainda não tinha acabado, e, enquanto esperávamos, ele lá teve de me contar, aborrecido. Do alto da sua superioridade intelectual, explicou-me que comprara um operário para ter em casa. Os operários, como eu certamente saberia (disse–o num tom trocista que eu decidi fazer de conta não perceber, para ele me contar tudo até ao fim), devido à evolução dos processos produtivos, eram uma espécie em extinção.

Viviam abandonados nas periferias, a maior parte deles com fome, condenados à morte e ao esquecimento. Só que houve quem percebesse estar ali um negócio potencial. Os operários, como os camponeses, povoam o imaginário de toda uma geração que leu Marx e se entusiasmou com o manifesto comunista, com a revolução de Outubro e por aí adiante.

Um mercado. De nicho, talvez, mas um mercado. E foi assim que ele comprou o seu operário, numa transacção comercial com vantagens óbvias para todos: o vendedor porque recebe umas massas, o operário porque obtém um tecto e alimentação garantida, o comprador porque fica em casa com um espécimen teoricamente extinto, que pode ser analisado através dos seus comportamentos numa perspectiva científica, e é útil para ser exibido aos amigos quase como um fóssil da luta de classes. E como é que funciona isso no dia-a -dia, diz -me, Alberto. É mais ou menos como ter um dependente a cargo, como um filho, disse-me ele. Tens a responsabilidade de o manter, mas um operário tem alguma autonomia, se o educares nesse sentido. Dá-se-lhe uma pequena semanada, para aprender a ter a noção do dinheiro, e ele gasta-a nos seus interesses. Por exemplo, agora o meu foi ao cinema, como vês. Às vezes compra um chocolate, um gelado, o que calha. Não lhe permito é vícios, tabaco e álcool estão-lhe vedados. Se o apanho a beber ou a fumar, corto-lhe logo a semanada, e até o posso recambiar. E depois, estas criaturas dão bastante jeito: por norma, têm uma força bruta e carregam tudo o que precisamos.

Mais, quando faz falta ir a locais mais esconsos, onde nunca se sabe o que nos aguarda, levar o operário é uma garantia de segurança; uma vez já aticei o meu contra um assaltante e ele deu-lhe porrada a sério, até tive de o mandar parar, que ainda matava o infeliz.

Por azar, logo agora que o Alberto-não-sei -quê me contava episódios interessantíssimos, o filme acabou e o operário apareceu todo contente, acenando ao meu antigo colega. Então, que tal de filme, perguntou este paternalmente. Bom, bom, no final o povo une-se contra o tirano e constrói uma sociedade mais justa. O operário disse aquilo com um brilho no olhar, explicando mais alguns detalhes com uma linguagem sólida.

Percebia-se que havia consistência teórica no seu pensamento, fora mesmo bem educado.

Despedimo-nos e vi-os partir, com o Alberto-não-sei-quê com uma mão a afagar as costas do operário, enquanto lhe falava com ternura. De repente, a ideia germinou na minha cabeça. E se eu também comprasse um operário? Melhor, se eu oferecesse um operário à Cecília como prova do meu amor? Seria um presente perfeito porque era para os dois, porque viveria connosco, porque através da redescoberta do marxismo a nossa relação voltaria ao seu esplendor. Não conseguia conter o entusiasmo, saltitando pelo passeio, sorrindo às pessoas com quem me cruzava.

A vida parecia-me luminosa. Sabe Deus como me foi difícil esconder da Cecília o meu empreendimento. Não que ela manifestasse alguma estranheza pelo meu comportamento dissimulado – ela não reparava de todo em mim – mas porque eu adoraria contar-lhe e levá-la comigo a escolher o operário. Mas assim não seria uma surpresa e os presentes devem ser uma surpresa.

Por isso, mantive tudo em segredo, desde os meus contactos iniciais com o vendedor, um tipo com ar sinistro e que me pediu logo um adiantamento de cinquenta por cento, até às minhas deambulações pelos bairros de operários, na ingrata missão de escolher um deles.

E que difícil foi. Uns tinham um aspecto desagradável, não ficavam nada bem lá em casa. Outros, bem aparentados, eram caríssimos. Outros ainda tinham demasiados estudos, nem precisavam de educação, óptimos para quem queria um operário já pronto. Não era o meu caso, a ideia de educar um operário a meias com a Cecília fascinava-me: pôr um pouco de nós nele, termos a satisfação de o ver compreender o mundo através dos nossos ensinamentos, assistir à sua decisão de se tornar revolucionário e fazer uma revolução, à qual assistiríamos embevecidos, dizendo a quem nos perguntasse, sim, é o nosso operário.

Comprei um operário sem estudos, um matulão mais para o calado que me pareceu uma boa escolha. Não sendo dos mais baratos, também não foi uma fortuna. Levei–o tal e qual como estava, apenas lhe comprei um fato-macaco novo, porque o dele estava sujo e roto. No caminho para casa fui–lhe explicando um pouco da nossa vida, para ele se começar a familiarizar. Passámos por uma loja de electrodomésticos onde me deram uma caixa vazia de um frigorífico, que o operário carregou facilmente, e chegámos ao apartamento a meio da tarde. Como a Cecília só iria chegar ao princípio da noite, deu tempo para embrulhar a caixa com papel colorido e um laçarote de lado, deixando só a parte de baixo aberta, por onde se enfiou o operário quando ouvi bater a porta do elevador. Ela entrou e ficou parada a olhar para a caixa, que ocupava o centro da sala. É para ti, querida. Para mim? Sim, para ti, abre, vá! A Cecília desatou a rasgar a caixa com a ajuda de uma faca de serrilha (cheguei a temer que fizesse algum corte no homem) e, ao fim de meia dúzia de golpes, o operário ficou à vista num mar de cartão e de papel. 

Quem é este? É um presente para ti, um operário. Ela manteve-se calada, de olhos abertos, assim a dar para o incrédulo. Continuei. Um operário teu, nosso, Cecília. Já viste, temos um trabalhador explorado em casa, alguém que, com a força do seu trabalho,  produz mais-valias e enche os bolsos dos capitalistas!

E vamos poder falar com ele, discutir estes assuntos, motivá -lo para a luta de classes. Não é o que sempre quisemos, ser parte activa numa revolução? Venceremos!

É a custo que agora, tanto tempo passado, vos relato que não foi nada disto que veio a suceder. O operário adaptou-se à nossa vida familiar, mas não da forma como eu desejava. Tentei discutir com ele a dialéctica marxista como base filosófica de análise e compreensão do mundo e da realidade à nossa volta. Expliquei -lhe que a revolução só seria possível tendo por detrás a teoria revolucionária, que só com o estudo do materialismo dialéctico a classe trabalhadora se emanciparia. Nada, era como se estivesse a falar para a parede, ele não ligava puto ao que eu dizia.

Pior, passava horas sentado no sofá, sempre agarrado ao comando da televisão, a mudar canais até encontrar um que estivesse a dar futebol. Futebol era o único interesse que ele demonstrava. Grunhia enormidades enquanto via os jogos, enervava-se, cheguei a vê–lo atirar o comando à parede quando um jogador qualquer falhou um golo. Estúuuuupido, era só encostar, caraaaaaalho, pá, foi o que eu o ouvi a verbalizar durante o acto. Vocês nem sabem a desilusão que se abateu sobre mim. Em vez de um operário esclarecido e consciente, coabitava com um troglodita só com cabeça para o quatro-três-três, o quatro-quatro-dois, resumindo, para o pontapé na bola.

À medida que a sua presença começava a ser-me insuportável, o indivíduo sentia-se cada vez mais em casa. Já não ajudava nas tarefas domésticas, não saía do sofá. Dava-se ao luxo de gritar Cilinha, traz-me mais uma cerveja! Vejam só, uma situação confrangedora e humilhante para uma mulher de inteligência superior. E ela lá ia, com a cerveja num tabuleiro, acompanhada de um prato de amendoins. Que o alarve devorava num ápice, pedindo mais e mais. Despachava cervejas a um ritmo frenético, amontoando as latas no chão, onde eu as ia recolher regularmente, para tirar trabalho de cima da Cecília. E, não satisfeito, arrotava, rindo-se dos arrotos, até parece que competia com ele próprio para os tornar cada vez mais sonoros. Que vergonha, que vergonha, como é que se chegara a este ponto?

Era evidente que eu não soubera educar o meu operário como o Alberto-não-sei–quê fizera com o dele. Ainda pensei em procurá-lo para lhe contar o que se estava a passar lá em casa, a ver se ele me dava algum conselho vindo da sua experiência de grande educador, mas não senti coragem para assumir o meu fracasso, outro, se nos recordarmos de que eu saí da universidade sem honra nem glória e ele por lá catedraticamente permanece. O melhor era mesmo não falar a ninguém acerca deste lamentável processo e resolver a questão com a nossa legítima autonomia.

Ou seja, trocar ideias com a Cecília, que era co-proprietária do animal (até mais do que co-proprietária, não esquecer que foi um presente para ela), para encontrar uma solução, que se desejava rápida. Abro aqui parênteses para vos dizer que, mediante a minha observação in loco, nunca notei que a Cecília estivesse farta do nosso operário. Vi-a rir-se dos disparates que ele bolçava em várias ocasiões. Reparei que servia as cervejas ao neandertal sempre com um sorriso na cara. Até observei que, uma vez em que ele lhe deu uma palmada no rabo, no regresso de uma das viagens cozinha-sala para entrega de cerveja no sofá, ela soltou um “ai” que teve de tudo menos de indignação. Fechados os parênteses, e mesmo tendo presente as situações relatadas entre eles, admito que não esperava a reacção da Cecília. Esperei por ela e, mal chegou a casa (escuso de explicar onde se encontrava o brutamontes), disse-lhe que precisávamos de ter uma conversa séria. Pediu-me um instante e foi à sala perguntar ao bicho se acaso lhe apetecia alguma coisa que ela lhe fizesse. E foi na cozinha, enquanto ela preparava uma tosta de atum para a aventesma, que eu lhe disse que chegara a hora de assumir o nosso falhanço e tomar uma decisão sobre o coiso: havia que o devolver à procedência o mais depressa possível. Olhou-me com um tal ar de desprezo que eu, evidenciando finalmente alguma perspicácia, me dirigi em silêncio para o quarto e fiz as malas. Saí e não mais voltei a ver a Cecília. Suponho que continue a viver encantada com o seu operário, quem sabe até já têm grunhozinhos. 

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