Estes filmes não se parecem com nada (a não ser com os seus autores)
Quatro filmes portugueses a concurso no IndieLisboa 2016. Quatro filmes-gesto que diluem fronteiras entre realidade e ficção, narrativa e ensaio. Quatro “ilhas” numa competição nacional que aposta em pensar o que há de novo por cá.
Aviso ao espectador: não entre no concurso nacional de longas do IndieLisboa à espera de filmes “convencionais”, arrumadinhos, certinhos. Este ano, de modo assinalavelmente mais nítido do que em anos anteriores, o festival “abre” o concurso nacional a obras que desafiam as noções tradicionais de género ou forma – são documentários? são ficções? são ensaios? São um pouco disso tudo ao mesmo tempo agora. O vencedor do ano passado – Os Olhos de André, de António Borges Correia, reconstituição dramatizada de um caso verídico interpretado pelos próprios não-profissionais que o viveram – já de algum modo “desfocava” essas fronteiras.
Em 2016, contudo, nenhuma das quatro longas – por ordem de projecção, O Lugar que Ocupas de Pedro Filipe Marques, Treblinka de Sérgio Tréfaut, Paul de Marcelo Felix e Estive em Lisboa e Lembrei de Você de José Barahona – é um filme “puro”, para usar a expressão de Nuno Sena, director do festival, em breve conversa com o PÚBLICO. “Dentro daquilo que recebemos,” explica, “tentamos encontrar alguma coerência, justificar uma competição em que haja um diálogo directo entre os filmes apresentados. Este ano, percebemos rapidamente que não existia nenhum filme puro. Todos fogem a assumir-se dentro do registo de um género”.
É um fenómeno certamente circunstancial – “a escolha está sempre reduzida a uma produção de longa-metragem que não é assim tão lata”, admite Sena – mas encaixa também, nas palavras do director do Indie, a um “contínuo” de trabalho patente em escolhas de anos anteriores. Cita Balaou, o primeiro filme de Gonçalo Tocha (vencedor em 2007, ano em que também se mostrou Floripes de Miguel Gonçalves Mendes), ou Birth of a City de João Rosas (em 2009, edição ganha por Ruínas de Manuel Mozos) para explicar como o festival sempre apostou em filmes que já misturavam registos diferentes.
Este ano, essa direcção surge amplificada por uma produção que parece assumi-la claramente, com uma dimensão de “gesto” artesanal os quatro filmes escolhidos. Um “artesanato” que confirma uma “ideia feita”, uma percepção global do cinema português como um pequeno universo autoral. Um dos realizadores da colheita 2016, Marcelo Felix, admite que a ideia do autor e a do artesanato são “produto uma da outra”. “Mas para mim não é nítido estar a criar relações entre eles, nem isso acaba por ser muito produtivo na minha relação com o cinema. Sinto afinidades com coisas mais pontuais, com gestos mais do que com obras inteiras,” explica o cineasta. “Na minha maneira de olhar para a história do cinema tendo muito a procurar ilhas.”
Pedro Filipe Marques (tal como Felix “estreante” no concurso do Indie) vai ainda mais longe: “Não me sinto em lado nenhum. Não gosto de grupos, nem nunca fui de andar em grupos, e muito sinceramente faço os filmes que me saem.” E Nuno Sena é peremptório na vontade do próprio festival não querer repetir lugares-comuns do próprio cinema português. “Não faz tanto sentido apostar em valores já consagrados, ou em filmes que já estão lançados, como tentar pensar o que há de novo,” diz, defendendo a opção por filmes que estão “no limite de várias tendências do cinema contemporâneo”.
Dito isto, essa dimensão de gesto personalizado e criado em liberdade de produção, independentemente da sua forma, é comum a todos estes cineastas e aos seus filmes. Sérgio Tréfaut, presente pela quarta vez na competição (que antes venceu já por duas vezes), tem o “controlo absoluto” da sua obra, da produção à distribuição, através da sua Faux, num dos casos mais notáveis e consistentes de sobrevivência da produção de pequena dimensão em Portugal. Pedro Filipe Marques trabalhou em regime quase de autoprodução (aqui com a pequena estrutura da Três Vinténs), enquanto Marcelo Felix filmou Paul com o orçamento de uma curta-metragem e a chancela da pequena produtora CRIM. José Barahona pode ser o mais “desafogado” do lote – Estive em Lisboa e Lembrei de Você é uma co-produção luso-brasileira – mas o orçamento foi, ainda assim, esticado ao máximo.
Sendo filmes muito diferentes entre si, existe contudo uma proximidade conceptual que corresponde à tal “impureza” para que Nuno Sena apontava – a tal dimensão de gesto pessoal, de filmes que não se parecem com nada a não ser com os seus autores. Curiosamente, a “classe de 2016” funciona quase por “seis graus de separação”: Pedro Filipe Marques montou vários filmes de Sérgio Tréfaut, que roda actualmente Seara de Vento em co-produção com a Refinaria Filmes de José Barahona, que co-produzira da primeira longa de Marcelo Félix, A Arca do Éden... Curiosidades de um mundo pequeno, que em nada trai a descrição dos quatro cineastas como peremptórios na sua concepção do cinema enquanto caminho próprio e individual. Gestos que de algum modo vão direitos à ideia do IndieLisboa - “seria fácil ter mais filmes na competição nacional, mas isso seria desfocar a escolha,” diz Nuno Sena. “Temos a escala certa para Portugal e queremos dar atenção ao que existe fazendo as atenções concentrarem-se num ponto, dando-lhe um bocadinho de densidade. Os filmes que estão são importantes. Têm que ser bem vistos.”