Esta crónica não tem a pretensão de ser imparcial, e não tem porque todos somos parte de alguma coisa, todos nos inscrevemos por alguma causa. Mas já lá vamos.
A história do industrial milionário que andou décadas a furtar-se a reconhecer a paternidade e quando, por fim, o teste de ADN a provou e tenta deserdar a filha, é eloquente quanto à natureza e à mentalidade que ainda se encontra no nosso país.
Concedo que os juristas se entretenham a esgrimir argumentos que tentem fazer a amoral tese que “o reconhecimento da paternidade não implica, necessariamente, o direito a herdar desse pai”, não consinto porém a cartilha de duplicidade e desresponsabilização de que este caso é eloquente.
Recuemos a 1979. Fernando Pinho Teixeira, 42 anos, casado e com filhos, envolve-se com Maria Olinda, ajudante de cabeleireiro de 19 anos. O Público detalha “durou escassos meses o relacionamento com Maria Olinda, que chegou a levar consigo ao estrangeiro em viagens de negócios. Mas nem por isso deixou de dar fruto. O empresário havia de mostrar mais tarde, no decurso da averiguação oficiosa de paternidade, a sua estupefacção perante o sucedido”. Afinal, num calculismo milimétrico “tivera o cuidado de lhe dar sempre a pílula antes de terem relações sexuais”. Um clássico da literatura e da vida: a “mãe”, a “legítima” em casa, a “puta” novinha e pobre para garantir a macheza.
Abandonada pelo amante a adolescente tenta abortar. É mal sucedida. Nasce uma menina dos amores adúlteros do industrial, Marina, que será entregue pela mãe a um casal de Torres Novas. “Foram tempos difíceis, em que sofreu fome e agressões. “A primeira vez que tive um colchão para dormir tinha oito anos””. O pai milionário lidera o grupo Ferpinta, que inclui mais de 20 empresas, é líder nacional na produção de tubos de aço. É avô, provavelmente abnegado, de 12 netos, além de ser comendador da República Portuguesa. Virtudes públicas, vícios privados.
Era inevitável que Marina quisesse conhecer o pai. E aos vinte anos escreve-lhe uma carta. “Exmo. Sr. Fernando Teixeira, sinceramente não sei como começar esta carta. Talvez começando por me apresentar como uma menina que quer ter o direito de saber quem é o pai (…) Que mal fiz eu para ser tratada com indiferença, é pecado querer conhecê-lo, pedir ajuda a um pai que tem possibilidades de me ajudar na vida?”. O que segue é conhecido de todos, uma longa batalha judicial, com o milionário a faltar pelo menos cinco vezes aos exames hematológicos para determinar o ADN, que acabaria por dissipar todas as dúvidas.
Se este homem tivesse consciência, há muito que teria escolhido dar fim ao sofrimento da filha. Mas seres assim sobrevivem da manipulação da consciência dos outros, “Maria Olinda era uma galdéria” — como se a “reputação” fosse exclusivamente feminina — invertem tudo, arremetem sobre os outros as suas culpas, tornam-se vítimas profissionais. Quem trata assim uma mulher, quem trata assim uma filha “ilegítima”, não se dá conta que está a maltratar todas as mulheres. Incluindo aquelas que o senhor comendador considera “respeitáveis”?
Escrevi no início desta crónica que não iria ser imparcial e não o sou, porque tenho uma causa: a da que a moral existe. Passa pela responsabilização de cada indivíduo pelas suas acções e omissões e não merece qualquer tipo de concessão sob pretextos “culturais” ou “sociais”: o respeito pelo outro é um valor absoluto não negociável. Assim como um filho, sejam quais forem as circunstâncias em que foi concebido, com excepção de uma violação, é sempre um filho. Aquilo que nos perpetua.
A vida é feita de escolhas, a decência é uma delas. Exige coragem, exige empatia e é preciso ter alma, e há muitos mais corpos, muito mais egoísmo, do que almas neste mundo.