Uma viagem pela alma de Sá-Carneiro abaixo

A exposição Mil Anos me Separam de Amanhã, centrada numa valiosa colecção particular de livros e manuscritos de Mário de Sá-Carneiro, inaugura-se esta quinta-feira em Paredes de Coura, no âmbito do festival Realizar: poesia.

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Uma fotografia inédita de Sá-Carneiro em bebé Nelson d'Aires
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O bilhete de despedida, destinado a Fernando Pessoa, que Mário de Sá-escreveu no próprio dia do seu suicídio Nelson d'Aires
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Uma imagem da exposição Mil Anos me Separam de Amanhã, ainda em fase de montagem NELSON D’AIRES
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Imagem de um dos espaços criados para a exposição Mil Anos me Separam de Amanhã Nelson d'Aires
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Outra imagem da exposição inaugurada em Paredes de Coura Nelson d'Aires
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A folha inicial de um manuscrito de Sete Canções de Declínio que nunca fora reproduzido Nelson d'Aires
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Segunda folha do manuscrito de Sete Canções de Declínio Nelson d'Aires
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Última folha do manuscrito de Sete Canções de Declínio Nelson d'Aires
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O telegrama enviado pelo avô de Sá-Carneiro Nelson d'Aires
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Verso do telegrama, onde o avô de Sá-Carneiro foi obrigado a atestar que a mensagem a enviar não ocultava nenhum tipo de código Nelson d'Aires
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Exemplar de Amizade (1912)
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Exemplar de Princípio (1912)
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Exemplar de A Confissão de Lúcio (1914)
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Exemplar de Dispersão (1914), com capa de José Pacheco
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Exemplar de Céu em Fogo (1915), com capa de José Pacheco

Há primeiras edições raras, incluindo um impecável exemplar do livro de poemas Dispersão, manuscritos nunca reproduzidos, como o das Sete Canções de Declínio, e até a única carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa que não está na Biblioteca Nacional, mas a peça mais forte da exposição Mil Anos me Separam de Amanhã, que se inaugura esta quinta-feira em Paredes de Coura, assinalando o centenário da morte do poeta de Indícios de Oiro, é uma amarelecida folha solta com meia dúzia de palavras rabiscadas a lápis, numa caligrafia larga e irregular: “Um grande, grande adeus do seu pobre Mário de Sá-Carneiro”.

Este bilhete de despedida de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa “é um dos documentos mais comovedores da literatura portuguesa”, diz o investigador italiano Giorgio de Marchis num texto que assina para o desdobrável que serve de catálogo à exposição.

Datado de 26 de Abril de 1916, o dia em que Sá-Carneiro se suicidaria num quarto de hotel em Paris, ingerindo cinco frascos de arseniato de estricnina, esta é a última fala de um diálogo que gerou o nosso primeiro modernismo e, por uma vez, sincronizou a literatura portuguesa com as vanguardas europeias da época. Precisamente nesse mesmo dia, Fernando Pessoa ainda escreve ao amigo, queixando-se de que apoquentações e afazeres o tinham impedido de responder mais cedo, mas esta carta nunca recebida é já uma deixa para ninguém, que o pano tinha caído definitivamente e a conversa, para aludir ao título do filme de João Botelho, estava acabada.   

Todos os livros, papéis e fotografias que podem agora ser vistos no Parque de Estacionamento Central de Paredes de Coura, onde a exposição é esta quinta-feira inaugurada na presença do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e do presidente da Câmara de Paredes de Coura, Vítor Paulo Pereira, vieram do coleccionador portuense Jorge Meireles.

Esta circunstância, que poderia ter limitado o alcance da exposição, ou tê-la reduzido a um conjunto mais ou menos aleatório de peças, acaba por lhe dar uma força particular. Em primeiro lugar, porque boa parte dos documentos seleccionados se relacionam com os últimos meses de vida do poeta, intensificando a sensação de estarmos a testemunhar a vertiginosa desagregação desse Sá-Carneiro final (e o que se assinala é, recorde-se, o centenário da sua morte), mas também porque a necessidade de trabalhar com este núcleo restrito de objectos estimulou os comissários da exposição - o programador cultural e diseur Isaque Ferreira e a arquitecta Susana Vassalo - a criar um envolvente e original percurso expositivo, que uma mostra mais exaustiva, e mais institucional, dificilmente teria permitido.

Integrada no festival Realizar: poesia, Mil Anos me Separam de Amanhã vai permanecer aberta durante o mês de Maio, mas durante os dias do festival, que termina no dia 25 de Abril, será acompanhada de outras evocações de Sá-Carneiro. Amanhã é exibido o filme Conversa Acabada, de João Botelho, que escreveu um belo texto para o desdobrável-catálogo da exposição, e no dia seguinte, 23, o investigador Ricardo Vasconcelos falará de Sá-Carneiro e as Vanguardas Parisienses, enquanto o Teatro Amador Courense propõe uma "incursão pela peça Amizade" com o espectáculo Se Não Houver Piano em Cena. E no dia 24, Giorgio de Marchis, apresentará a palestra Outro Sá-Carneiro.

O poeta no subterrâneo

A primeira originalidade de Mil Anos me Separam de Amanhã é o seu cenário: um enorme parque de estacionamento, de dimensões um tanto extravagantes para as necessidades de Paredes de Coura. A segunda é o facto de Susana Vassalo ter desenhado expressamente para esta mostra um espaço que funciona como a sucessão de cenários de uma peça, e que foi inspirado no poema Sete Canções de Declínio, cujo manuscrito é um dos documentos mais notáveis da exposição.  

Utilizando a forma circular, opção também ela fundada na obra de Sá-Carneiro, onde o círculo é frequente, sendo possível ver nele a metáfora visual dessa espécie de eu cercado por si próprio que foi a marca do seu universo interior, a exposição organiza-se em sete etapas com designações próprias. A primeira, Declínio, consiste na própria descida ao piso subterrâneo do estacionamento: apenas a sensação de se ir mergulhar numa interioridade, sem nada ainda para se ver.

A segunda, Memória, é composta por várias fotografias do poeta, da infância à idade adulta, que o visitante é convidado não propriamente a ver, mas a espreitar, como um voyeur. Uma delas, mostrando-o em bebé, nunca foi reproduzida e encerra um pequeno enigma. A imagem veio de um conjunto de papéis que estavam nas mãos do pai de Sá-Carneiro e alguém escreveu à mão "Mário de Sá-Carneiro" no cartão onde está colada. Mas o dito cartão é da Foto Beleza, no Porto, que ainda não existia em 1890, quando o escritor nasceu. Uma explicação possível é que tenha sido encomendado ao estúdio portuense que reproduzisse ou ampliasse um original anterior.

Seguem-se os Livros, expostos em pedestais, o que sugere o valor monumental que lhes é atribuído, mas também permite que o visitante consiga ver capas, contracapas e a lombadas, o que seria impossível se estivessem simplesmente dispostos numa vitrina. Mostram-se aqui os cinco livros que Sá-Carneiro publicou em vida: a peça Amizade, escrita com o seu amigo Tomás Cabreira Júnior, que já se suicidara quando a obra saiu, em 1912, o volume de novelas Princípio, do mesmo ano, a narrativa A Confissão de Lúcio e o volume de poemas Dispersão (uma edição de autor de tiragem restrita, com capa de José Pacheco), ambos impressos em 1913, embora as respectivas folhas de rosto indiquem 1914, e por fim Céu em Fogo, a segunda compilação de novelas, com uma notável capa de José Pacheco.

Não por acaso, numa exposição toda ela pensada para acentuar um efeito de contemporaneidade, falta o grande livro de poemas de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro, que o poeta nunca viu impresso e que a Presença só publicaria em 1937, a partir do caderno manuscrito que o autor enviou a Pessoa, hoje conservado na Biblioteca Nacional (BN). E é pela mesma ordem de razões que os cinco exemplares expostos apresentam as suas capas de brochura originais, sem encadernação, tal como o poeta os viu sair da gráfica.

A etapa central, a quarta, é o Arquivo, que reúne quase todos os manuscritos que integram a exposição. Para os expor, foi concebido um engenhoso sistema de 21 gavetas, que os visitantes vão abrindo pela ordem que desejarem, descobrindo a correspondência do autor com familiares e amigos, manuscritos de vários poemas e a única peça posterior à morte do poeta: o telegrama que o seu avô paterno, José Paulino, enviou ao pai de Sá-Carneiro, o engenheiro Carlos Augusto de Sá-Carneiro, então em Moçambique, onde dirigia o porto e os caminhos-de-ferro de Lourenço Marques.

Descontado o bilhete despedida, este é talvez o documento mais pungente da exposição, sobretudo pelo contraste entre o laconismo da mensagem - “Mário suicide Paris” - e a extensa declaração que, naquelas penosas circunstâncias, o avô, que informava um pai da morte do seu filho único, foi obrigado a redigir e assinar no verso do telegrama, assegurando que o “texto”, nas suas três desoladas palavras, não compreendia “uma significação diferente da que apresenta a sua redacção”. Estava-se na Primeira Guerra, e a norma visava provavelmente impedir mensagens em código.

Neste núcleo, outro documento comovedor é uma carta a um amigo, o desenhador Ferreira da Costa. Escrita a 19 de Abril de 1916, a uma semana do suicídio, Sá-Carneiro desdobra-se em desculpas por não o ter visitado e pede-lhe: “É preciso que o meu querido Ferreira da Costa abra uma excepção para mim e me perdoe, porque eu sou maluco”.

Uma extensa e importante carta escrita a Fernando Pessoa na véspera de Natal de 1915 é outro tesouro deste Arquivo, que inclui ainda manuscritos de poemas como Sete Canções de Declínio ou Caranguejola, com pequenas variações em relação às versões fixadas no caderno dos Indícios de Oiro, além de umas enigmáticas folhas, aparentemente rasgadas de um caderno, com alguns dos últimos poemas de Sá-Carneiro, como Crise Lamentável, El-Rei ou Aquele Outro. Trata-se de textos que o poeta já não incluiu no manuscrito de Indícios de Oiro e que têm sido editados a partir dos originais que Sá-Carneiro enviou em folhas soltas a Pessoa. Estas versões agora expostas em Paredes de Coura, e que apresentam pequenas diferenças textuais, sugerem que pode ter existido um segundo caderno do qual nada se sabe.  

O percurso prossegue com o núcleo Poemas, onde o visitante é convidado a colocar uns auscultadores e ouvir Isaque Ferreira dizer as Sete Canções de Declínio, e com a Despedida, um espaço onde só entra uma pessoa de cada vez, sendo confrontada com o bilhete de despedida de Sá-Carneiro. Susana Vassalo explicou ao PÚBLICO que concebeu um espaço exíguo e rodeado de espelhos, para que o visitante se veja a si próprio como testemunha do fim de Sá-Carneiro, numa alusão à encenação que o próprio poeta fez da sua morte, convidando um amigo parisiense, o comerciante José Baptista d’Araújo, a visitá-lo no hotel Nice à hora a que tencionava suicidar-se. Quando Araújo abriu a porta do quarto, pelas 20h, ainda o encontrou vivo, deitado sobre a cama num impecável  smoking, mas Sá-Carneiro já tinha ingerido a estricnina e não tardaria a agonizar e morrer.

O último momento desta viagem pela alma de Sá-Carneiro abaixo, Fim, é dominado pelo poema homónimo de Sá- Carneiro, que abre com o verso: “- Quando eu morrer batam em latas”. Mas para chegar ao poema, o viajante tem de atravessar uma cortina de chocalhos, ouvindo essas latas que o poeta desejou que soassem no seu funeral.

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