Não é a magia da Motown, é o suor do Motown
Em 1965, a Motortown Revue chegava a Paris, no final da sua primeira digressão europeia. As Supremes, os Miracles, Stevie Wonder, Martha and The Vandellas. E os Funk Brothers. Motortown Revue in Paris é uma cápsula de um outro tempo. Mostra-nos o outro lado da Motown. O suor do palco.
“Pela primeira vez na Europa irão ver um espectáculo inteiramente americano, interpretado e apresentado exactamente como nos Estados Unidos”. A mera citação destas palavras é suficiente para perceber a sua origem muito atrás no tempo, de uma era em que a cultura popular americana não era linguagem global. Separam-nos delas quase 51 anos. Foram ditas por Harold Kay, mestre-de-cerimónias francês de serviço no famoso Olympia , que ali acolheu pela primeira vez, como Kay fez questão de esclarecer, o som da então jovem América, a vibrante, moderna e elegante música dessa Motown que, nos Estados Unidos, ocupava os lugares cimeiros nas tabelas de vendas e, pela sua simples existência, contribuía também para a afirmação dos direitos e do digno lugar da comunidade negra nuns Estados Unidos em tumulto.
Estamos em Abril de 1965. Uma armada de lendas então em formação, composta por Smokey Robinson and The Miracles, The Supremes, Stevie Wonder, Martha and The Vandellas e Earl Van Dyke e os Funk Brothers chegavam à capital francesa no final da primeira digressão europeia da Motortown Revue, que fazia brado nos Estados Unidos e que Berry Gordy, fundador da Motown, tentava exportar para a Europa.
Criada como parada de estrelas, mostruário do talento da editora e montra do glamour dos seus músicos e intérpretes, passara no seu périplo europeu pelo Reino Unido onde, após o sucesso inicial, com datas esgotadas em Londres, se deparara com uma frustrante indiferença – conta-se que, em algumas das dezenas de datas britânicas, contaram-se por vezes mais pessoas em palco que na assistência. Em Paris não seria assim.
Os parisienses tinham relação longa com o jazz e com o blues e uma crescente paixão pela soul e rhythm’ n’blues. Ainda para mais, o concerto mereceu ampla divulgação na imprensa e em cartazes nas ruas – e estava marcada para o nobilíssimo Olympia. Estava fadado para o sucesso e, garante quem lá esteve, foi mesmo um sucesso. Mas não é isso que torna especial esta reedição revista aumentada da Motortown Revue in Paris, disponível em CD duplo ou em triplo vinil.
Torna-a especial a qualidade do som, como o percebeu imediatamente à época o fundador da Motown, Berry Gordy, que logo promoveu o lançamento editado do espectáculo – apenas dois microfones, mas um alcance e uma nitidez que, dizem os especialistas, não se encontra em nenhum outro registo dos concertos Motown. Torna-a especial, depois, o facto de esta edição seguir fielmente, sem cortes, todo o espectáculo, incluindo as apresentações de Harold Kay e a sua maravilhosa incapacidade para acertar na pronúncia correcta dos nomes americanos – ou seja, permite-nos acompanhar, do princípio ao fim, o que era um espectáculo Motortown Revue. Torna-a especial, por fim, a música e a forma como aqui a ouvimos.
Este era um tempo em que a formalidade do mundo do espectáculo ainda não tinha sido tomada pelo furacão rock’n’roll. Harold Kay fazia longa dissertação inicial, entrava uma banda para tocar não mais que vinte e cinco minutos – era esse o tempo disponível aos cabeças-de-cartaz, as Supremes e os Miracles –, voltava o mestre-de-cerimónias no seu fato de cerimónia, nova apresentação, nova banda a assim sucessivamente. Nesse sentido, Motortown Live in Paris é uma admirável cápsula do tempo. Que nos mostra, e isso é porventura o mais interessante desta edição, um outro lado da editora de Detroit, agente fulcral na definição da música popular urbana da segunda metade do século XX.
O som da Motown era uma fantasia tão eficiente quanto admirável, criado com método no laboratório e oficina que eram os estúdios em Detroit: o fogo da soul e o balanço pecaminoso do rhythm’n’blues transformados em majestosamente sublime matéria pop, responsabilidade das equipas de compositores e dos arranjadores das sumptuosas orquestrações. Ao vivo, muda a natureza do som: directo, mais rápido, mais cru. A Motown dos cantores excepcionais, individualidades moldadas na infalível linha de montagem da editora, e dos músicos de sessão que traduziram com toque de génio toda uma estética sonora – ficaram para a posteridade como Funk Brothers e eram uma formação variável de dezenas de músicos. Em Paris estavam uma mão-cheia deles. Dada a pouca simpatia do patrão Berry Gordy pela palavra “funk”, surgem creditados como Soul Brothers.
Tendo isto em perspectiva, não surpreende que os instrumentais do pianista Earl Van Dyke que abrem o concerto, e que ressurgem a meio da actuação, sejam tão vivos, fluídos e dinâmicos, verdadeiro maná para uma pista onde se sua dançando, em vez de, como no Olympia, bater o pé sentado. Entre a banda, para além do pianista, encontrávamos jovens mestres como o guitarrista Robert White, que ouvimos em clássicos como My girl ou You keep me hangin’ on, o saxofonista Eli Fontaine, que anos depois contribuiria para What’s Going On, a obra-prima da soul assinada por Marvin Gaye em 1971, ou essa figura ímpar que foi o percussionista Jack Ashford. Dizer que tocava pandeireta é pouco. Aquele cometeu a proeza de fazer da pandeireta elemento indispensável do som Motown e ouvi-lo neste In Paris mostra porquê – quando em acção, transforma-se no coração rítmico de toda a música, num verdadeiro agitador (literalmente).
As excitantes Martha & The Vandellas aceleram, irresistíveis, com Nowhere to run (que acabara de ser editado), Heatwave ou Dancing in the street, e fazem de If I had a hammer um portento soul. Em Stevie Wonder, então com 15 anos, sentimos a agitação e a frenesi de possesso com que ocupava o palco – Fingertips é exemplar pelo sentido de espectáculo e, sem contradição, pela entrega ao momento sem restrições. As Supremes, por seu lado, sendo a criação mais perfeita da Motown, sofrem com a ausência das orquestrações, do eco que cobre as vozes, enfim, de todo o cenário criado em estúdio por mãos sábias. Ainda que Baby love seja sempre de uma doçura inexplicável, algo parece falhar na apresentação de Diana Ross, Florence Ballard e Mary Wilson (os relatos de público e imprensa referem sempre, impressionados, as coreografias e a forma como as Supremes interagiram com o público, portanto, reduzidos ao registo sonoro, podemos estar a cair numa injustiça).
Chegará por fim Smokey Robinson, então vice-presidente da Motown, mas também uma das suas maiores estrelas e um dos seus melhores compositores. Encerra o espectáculo liderando os Miracles com charme de Sam Cooke, agitação de Ray Charles e aquela voz impressionante, capaz de subir ao falsete quebra-corações com a mesma facilidade com que guia com fervor um crescendo gospel muito profano.
Com todos os músicos da Revue em palco para a despedida, os aplausos irrompem novamente. O mestre-de-cerimónias andaria algures pelo palco entre os músicos. O público sairia depois na noite parisiense, preparado para contar o que é viver “um espectáculo inteiramente americano, interpretado e apresentado exactamente como nos Estados Unidos”. Foi há 51 anos e ouvimo-lo agora. Não é a magia da Motown. É o outro lado da Motown, o suor no palco. Brilha de outra maneira, mas também impressiona.