Numa década fizemos quase 1200 ensaios clínicos. Mas podíamos ter feito mais
Sobrinho Simões defende que Portugal devia apostar mais nos ensaios de fase I e nos propostos por investigadores nacionais. Precisamos de organização, de centros de referência e de resposta mais rápida, diz.
Na última década, foram aprovados em Portugal quase 1200 ensaios clínicos. Mas o país continua com uma das mais baixas taxas deste tipo de estudos por milhão de habitantes da Europa Ocidental, lamenta o director do Ipatimup (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) e vice-presidente do Health Cluster Portugal (HCP), Manuel Sobrinho Simões, que lembra que os ensaios clínicos são a única forma de os doentes terem acesso a moléculas inovadoras antes de estas estarem no mercado. Para alguns doentes, é mesmo a última oportunidade de sobrevivência ou cura.
Só em 2012, segundo um estudo feito pela consultora PricewaterhouseCoopers (PwC), o investimento em ensaios clínicos, em Portugal, rondou os 36 milhões de euros e representou 3,5 milhões de poupança na despesa pública em medicamentos e meios complementares de diagnóstico. “Há um retorno de 2 euros para cada um euro investido”, destaca Sobrinho Simões, que também preside ao Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos. “Podíamos ganhar muito mais do que estamos a ganhar. Além dos ganhos para as instituições, os doentes beneficiariam muito se tivessem acesso às últimas novidades”, enfatiza.
Segundo os cálculos da PwC, uma maior aposta nesta actividade poderia ter gerado, só no ano passado, 143 milhões de euros. Apesar de nos últimos anos ter havido uma recuperação no número de ensaios clínicos (ver infografia), Portugal continua bem longe de outros países europeus, segundo este estudo. O número de ensaios por cada milhão de habitantes era em 2012 pouco superior a dez, quando outros Estados-membros, como o Reino Unido, tinham 15 ensaios por milhão de habitantes. O valor era superior na Holanda, com 32, na República Checa, com 33, na Áustria, com 40, e na Bélgica chegava a um máximo de 47.
Numa altura em que já estamos na era da "medicina da precisão", como diz Sobrinho Simões, o Health Cluster Portugal decidiu esmiuçar num encontro as razões que explicam o atraso português e olhar para a experiência de países como a Bélgica. O encontro começa esta quarta-feira no Hospital de Braga.
O patologista frisa que o futuro passa por ensaios clínicos feitos à medida de cada doente. Nos últimos anos, o paradigma mudou. Passou-se da medicina baseada na evidência para a medicina personalizada, depois percebeu-se que o genoma não resolve tudo, e agora, os olhos dos especlialistas estão virados para os ensaios de uma só pessoa – a medicina de precisão. “O futuro são os ensaios clínicos adaptativos. É muito sedutor e muito inteligente, apesar de perigoso", diz.
Desorganização e corporativismo
Por que é que Portugal não tem mais ensaios clínicos? Além da “desorganização”, os hospitais estão “sobrecarregados e excessivamente preocupados com as urgências”, explica o patologista, que acrescenta outro factores que funcionam como entraves ao desenvolvimento desta actividade. Além do "corporativismo”, porque alguns médicos continuam a não querer distribuir tarefas”, em Portugal persiste a “tradição minifundiária” dos hospitais que conduz à incapacidade de se constituirem centros de referência para concentrar, por exemplo, a investigação e o tratamento de patologias raras. Segundo o estudo da PwC, os problemas radicam na burocracia, nos poucos incentivos à investigação, além da demora nas autorizações – os ensaios necessitam da luz verde da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) e do parecer positivo da Comissão de Ética para a Investigação Clínica.
Mas Portugal, frisa Sobrinho Simões, dispõe de todas as condições para desenvolver esta área. “Não temos ainda a selvajaria dos países emergentes e, ao mesmo tempo, não temos uma excessiva regulamentação”, diz o patologista que nota que, para o Health Cluster Portugal, o mais importante é conseguir mais ensaios “com investigação de translação, que ligue os investigadores à realidade”.
“Fomos treinados para fazer papers. Um artigo científico é mais valorizado do que uma patente em termos de carreira académica”, lamenta. Além do número de ensaios clínicos em geral ser reduzido, em Portugal faltam ainda ensaios clínicos de fase I (em que se testa a toxicidade e segurança das novas substâncias em pessoas saudáveis) e ensaios que partam da iniciativa dos investigadores (a esmagadora maioria é feita a pedido da indústria farmacêutica), frisa. “Gostava de ter mais ensaios de fase I porque isso significava que as boas ideias chegavam a ser testadas, seria um estímulo para que os investigadores levassem um bocadinho mais longe as suas descobertas”, explica.
O atraso também tem outras implicações. Se não se agarram os ensaios esta fase, corre-se o risco de não ser seleccionado nas fases posteriores (a maioria dos ensaios é promovida por centros internacionais). Em Portugal, a maior parte dos estudos continuam a ser de fase II (quando se tenta perceber a eficácia da substância nos doentes), mas são sobretudo de fase III (em que se compara a nova terapia com outra já disponível no mercado ou com um placebo).
Só no ano passado, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) recebeu 137 pedidos de autorização para ensaios clínicos, a maioria dos quais na área da oncologia . Deste total, 123 foram aprovados e cerca de 12 mil pessoas estiveram envolvidas em diferentes fases da investigação.