Quando tudo aponta para que o “costismo” seja afinal um “neo-socratismo”
Ainda antes de claudicar por razões políticas, o costismo dá sinais de degenerescência e esclerose democrática que o desvendam como um neo-socratismo.
1. Interrompo, por uma semana ou duas, a série de artigos que tenho dedicado à mobilidade social como desígnio fundamental do projecto do PSD para o período pós-troika. E faço-o, naturalmente, para acompanhar a actualidade, que, na semana que passou, tem também muito a dizer sobre o nosso futuro próximo e com o médio-prazo.
2. A última semana revelou as enormes fragilidades do governo PS. Revelou ainda, é certo, por ocasião do debate quinzenal, as debilidades da coligação parlamentar que sustenta o Governo; debilidades estas que, apesar de tudo, eram já antecipáveis e até visíveis no dia-a-dia da governação. O que não era expectável era o mal-estar na formação governativa, que, por ser monocolor e minoritária, deveria ser especialmente coesa e combativa. E não era também de esperar de um Governo minoritário e que se diz, a toda a hora, disponível para o diálogo e a concertação com as várias forças políticas a arrogância e a auto-suficiência no exercício do poder, típicas do socratismo de má memória.
3. As vicissitudes vividas e protagonizadas por João Soares são um bom exemplo destes dois padrões de comportamento assaz inesperados. O modo como exerceu o cargo – paradigmaticamente retratado na forma expedita e quase grosseira com que se quis desfazer da administração do CCB – é própria de um “despotismo iluminado” de pacotilha. Despotismo que ficou bem vincado no triste episódio das “salutares bofetadas”. É um estilo arrogante e auto-suficiente em que o Governo – incluindo, à cabeça, o Primeiro-Ministro, que recorre amiúde e sem rebuço à ironia e ao cinismo – é pródigo. Por outro lado, a maneira como o chefe do Governo e o Ministro geriram a crise, com a desautorização pública do Ministro, através de uma admoestação e de um pedido de desculpas do primeiro, mostra uma surpreendente ausência de espírito de coesão e de solidariedade institucional. Mesmo que tivesse de terminar em demissão, tudo poderia ter sido tratado com recato, poupando as instituições ao espectáculo e ao desgaste que os dois governantes nos ofereceram.
4. A demissão do Chefe de Estado-Maior do Exército confirma também aquele diapasão. Ainda que o Ministro da Defesa possa ter razão quanto à substância da entrevista – que demandava algum esclarecimento e clarificação de posições –, o tratamento da matéria, naqueles exactos termos, na esfera pública subsume-se aquele traço identitário de sobranceria moral. A instituição militar tem peculiaridades e a entrevista era deveras ambígua para uma intervenção tão drástica ou extrema. A dureza e publicidade dessa palavra puseram em causa a confiança das Forças Armadas no próprio Ministro, com prejuízo para o dito valor da coesão e da solidariedade institucional entre o braço militar e a sua chefia política. A isto se somou o enigmático silêncio do Primeiro-Ministro na matéria, que não pode ter agradado aos militares e que demonstra mais uma vez a ambiguidade em sede de consistência interna da formação governativa.
5. Mais evidentes são seguramente os conflitos fratricidas dentro do Ministério da Educação. A julgar pela reacção do Secretário de Estado demissionário, o borbulhar interno do Governo na área educativa é uma mistura de altivez do Ministro e de uma incapacidade de articulação e coordenação discreta e serena. Os episódios parecem de uma novela de faca e alguidar, naquele que era já o sector mais frustre e fraco da governação. À arrogância do Ministro e à falta de relações de lealdade institucional, soma-se a suspeita de “aparelhismo” e “caciquismo” partidário nas anteriores e novas nomeações para área sempre apetecível da juventude e do desporto. Arrogância e “partidarização” são genes identitários bem conhecidas do velho socratismo.
6. A mais grave das situações – e que reedita os piores hábitos da ordem socratista – é a aparição do “melhor amigo” de António Costa como mediador informal (do Estado) em negociações públicas e privadas. Trata-se de um ultraje a todas as regras de um Estado de Direito, que não seria nunca brindado com a complacência com que tem sido, a um Primeiro-Ministro de outra cor política. Uma situação que mostra bem o duplo padrão de julgamento que tem a estrutura dominante da nossa esfera pública e mediática. As explicações de Costa, dadas numa lamentável entrevista, reforçam aquele traço de arrogância e de cinismo e mostram quanto esse posicionamento está eivado dos sentimentos de posse e de impunidade do socratismo, agora redivivo.
Verdadeiramente patéticas e conscientemente usadas como pura manobra de distracção foram as analogias que pulularam na comunicação social, como a mediação secreta para libertação de reféns, a contratação de António Borges ou a constituição de comissões para reforma legislativa. A comparação com a mediação político-diplomática para libertação de reféns e as comissões de reforma legislativa, de tão despropositadas, nem merecem comentário. E a intervenção de António Borges foi feita no quadro de uma consultora, assente num contrato com uma empresa pública, responsável pelas participações do Estado que estariam sujeitas a privatização. António Borges não era amigo do Primeiro-Ministro e tinha, por detrás de si, uma carreira nacional e internacional que certificava as suas competências específicas.
A intervenção de Lacerda Machado, tal como ocorreu nos casos da TAP (onde tem um ostensivo e grave conflito de interesses), dos lesados do BES e nas negociações BPI é totalmente anómala. E, no novel quadro contratual, mesmo que mais benigno, não afasta nem sombras e nem zonas escuras.
Ainda antes de claudicar por razões políticas, o costismo dá sinais de degenerescência e esclerose democrática que o desvendam como um neo-socratismo.