O meu testamento vital foi devassado?
Por que razão o meu Testamento Vital, de carácter sigiloso, foi “consultado”? Ninguém me responde.
Embora tencionasse aproveitar grande parte do formulário que eu própria tinha apresentado na parte final meu livro Testamento Vital (TV) (Sextante, 2011), baseado em múltiplos formulários estrangeiros que consultara, problemas vários fizeram-me atrasar a reformulação e, portanto, a entrega. Porém, o confronto com uma cirurgia delicada em 1 de Dezembro de 2015, decidida com pouco tempo de antecedência, fizeram-me desistir provisoriamente da ideia inicial e utilizar o formulário (facultativo) de Directivas Antecipadas de Vontade que se pode imprimir via internet a partir do Portal do Utente dos Serviços do Ministério da Saúde, a meu ver mal concebido (as minhas críticas são já públicas). Assim, entreguei o documento a 27 de Novembro de 2015, fazendo muito uso dos espaços em branco para efectuar as minhas solicitações e recusas, e acrescentando-lhe uma folha A4 com a nome do procurador que indicava na ausência do principal, pois essa possibilidade dada por Lei é impossível de concretizar no formulário existente. Como não podia comparecer nos poucos dias e horas em que o ACES respectivo estava disponível para este assunto (embora esse não seja decerto o principal motivo que explica o pouco número de TVs existentes, os horários de atendimento não deviam ser revistos?), a funcionária foi extremamente gentil e o documento foi validado em poucos dias.
Para meu espanto, no dia 12 de Dezembro do mesmo ano, um sábado, recebo um e-mail do RENTEV (Registo Nacional de Testamentos Vitais) com o seguinte teor: “Serve o presente email para notificar vossa Excelência [...] que o seu testamento vital foi consultado por [nome de mulher] à data 2015-12-11”. O mesmo e-mail era-me reenviado a 14 do mesmo mês (2.ª-feira seguinte).
Telefonei para a funcionária que me atendera: espanto. Ninguém naquele ACES tinha aquele nome, não podia ser sequer quem me analisara o processo.
Apesar das dificuldades em sentar-me por causa da cirurgia, a 14 de Dezembro enderecei a minha queixa, via e-mail, ao Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Com que autoridade é que a senhora em causa tinha consultado o meu TV? A que propósito? Como? Estava-se ou não em presença de uma intromissão indevida em documento sigiloso?
Como não obtinha qualquer resposta, a não ser apenas um recibo, e o telefone dos SPMS não era atendido por ninguém, remetendo logo para voicemail, reenviei o mesmo e-mail a 17 desse mês para um outro endereço dos mesmos serviços.
A 29 do mesmo mês envio queixa similar para a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), usando o formulário existente no site da própria Comissão. Curiosamente, recebo nesse mesmo dia um e-mail do secretariado dos SPMS dizendo o seguinte: “Acusamos a recepção da sua queixa, à qual está já a ser dada a nossa melhor atenção e análise. Logo que for possível, e com brevidade, receberá informação mais detalhada”.
Quanto à CNPD, informou-me logo no dia seguinte que ia colocar a minha queixa à consideração superior, e, em 13.1., informou-me que em 5/01/2016 tinham aberto um processo de queixa.
A questão é que, até hoje, nem os SPMS nem a CNPD me dizem a que propósito é que a dita senhora devassou (até prova em contrário é devassa, não?) o meu TV, nem 15 dias após a sua entrega.
Ainda dentro deste âmbito: a Lei n.º 25/2012 de 16 de Julho afirma, no seu ponto 3: “O RENTEV informa por escrito o outorgante e, caso exista, o seu procurador, da conclusão do processo de registo do documento de diretivas antecipadas de vontade e ou procuração, enviando a cópia respectiva”. No meu caso – e no de outras pessoas, todas? -, os procuradores não foram informados de nada.
Quanto à Portaria n.º 96/2014 de 5 de Maio, afirma (ponto 5): “O RENTEV disponibiliza a informação constante das diretivas antecipadas de vontade e das procurações de cuidados de saúde na Plataforma de Dados de Saúde, que depois a disponibiliza, mediante acesso reservado, aos profissionais de saúde e aos utentes, através do Portal do Profissional e do Portal do Utente.” A senhora que “entrou” no meu TV era uma profissional de saúde? E que necessidade teve de o consultar, se o acesso é reservado, como tem de sê-lo? Por outro lado, o ponto 7 da mesma Portaria afirma que cada acesso à informação do RENTEV é automaticamente comunicada ao outorgante e ao seu procurador (a linguagem devia estar no plural), mas nenhum dos meus procuradores recebeu qualquer indicação. Alguém me diz o que se passa? Se já há poucas pessoas a elaborarem o seu TV, casos como este não incentivarão a recorrer a um instrumento tão necessário.
Professora Aposentada da UMinho (laura.laura@mail.telepac.pt)