Entregues aos bichos

É nisto que somos bons: em leis.

Há muitos, muitos anos, ainda os animais falavam, ouvia-se este refrão: “Assim defino a vida de quem tem/ animais de estimação de vida sã/ em barracas com ar condicionado/ bichinhos devoram croissants/ cães com casaquinhos de cambraia/ e gatos com golinhas de astracã”. Por aqui se via que nem todos os bichos eram exactamente bichos, havia-os já com estatuto de pessoas, ou mesmo superior a muitas pessoas. Claro que eram a excepção, e a canção em si (Animais de estimação, gravada pela saudosa Filarmónica Fraude em 1969) era sobretudo uma crítica aos humanos, a uma certa burguesia decadente da época. A que propósito vem isto agora? A propósito da iminente alteração do estatuto jurídico dos animais, proposta pelo PAN no Parlamento e aceite por entre elogios e incentivos. Pois é nisto que somos bons: em leis. O resto… logo se vê. Porque há-de continuar a haver bichinhos a comer alegremente croissants e outros a quem damos pontapés ou cortamos o pescoço. É a lei da vida – feita por nós. Os bichos, naturalmente, tratam da deles. E isso inclui uma cadeia alimentar onde se devoram para extensão de cada espécie. A nossa especialidade, pelo contrário, é mais a extinção. Não só de espécies (animais e outras) como de bons costumes. Aos que pontapeiam cães ou gatos, como aos que maltratam racionais da sua espécie (com especial inclinação para crianças e idosos), não será uma lei que os vai travar. Sem educação, que escasseia, tais leis terão inútil destino. E aqui interessa pouco a condição social: há mendigos que tratam melhor os animais que com eles partilham as misérias do que certos meninos bem nutridos que descarregam no bicho que têm lá por casa (nele ou nos irmãos, se calha) as violências do seu tédio. Os bichos não são coisas? As pessoas também não, apesar de tantas serem indignamente tratadas como tal. As leis ajudam? Certamente. Mas sem actos conscientes e firmes, continuaremos entregues aos bichos; aos bichos humanos, que em perversidade superam os outros.

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