Catarina saiu de um mês em que “praticamente não estava viva”

Na aldeia alentejana de Campinho não se sabe o que é a doença bipolar. O que se comenta é que há pessoas que sofrem “dos nervos”, a algumas dá para chorar, outras para se isolar, e depois há Catarina, que ninguém entende. Equipas de apoio domiciliário, como a que a visita, ainda são casos isolados.

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Dentro da terrina, Catarina Lopes tem um papelinho com o nome do seu diagnóstico: "doença bipolar" Rui Gaudêncio
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A conversa acontece na sala da casa de Catarina, na aldeia de Campinho. Rui Gaudêncio
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A equipa vinda do Hospital de Évora bate à porta de Catarina Lopes, que os esperava. Rui Gaudêncio
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A equipa de apoio domiciliário inclui um médico, uma enfermeira e uma assistente social.. Rui Gaudêncio
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Gertrudes Moreira passa o dia fechada em casa. Rui Gaudêncio
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Os técnicos deslocam-se num carro até às casas de doentes mentais graves do distrito de Évora. Rui Gaudêncio

As frases saem-lhe cheias de diminutivos: “Soube-me tão bem tomar o meu banhinho, comer o meu almocinho. Vou comer a minha laranjinha.” É como se Catarina Lopes estivesse enamorada pela banalidade do seu quotidiano, como se sentisse carinho por cada objecto que a rodeia, cada gesto que consegue fazer de novo, encantada com uma normalidade que retomou há apenas dois dias. “Tenho-me sentido tão bem. Hoje e ontem.”

Catarina, com as suas plantas, esteve um mês fechada em casa, às escuras, deitada na cama. Olhando para os seus cactos, diz que deles não esperava outra coisa, claro que sobreviveram, são resistentes, não precisam dos seus cuidados. Mas não esperava que o antúrio se aguentasse sem água, sem luz. Catarina trata dos dois rebentos que restaram como se precisasse de os compensar pela sua ausência.

A enfermeira Margarida Gião, a assistente social Alexandra Galvão e o médico interno de Psiquiatria Filipe Godinho estão à porta de Catarina, na aldeia alentejana de Campinho, concelho de Reguengos de Monsaraz (distrito de Évora). Ainda antes de entrarem, a enfermeira repara que uma das portadas está aberta. Adivinha que talvez Catarina esteja melhor do que das muitas vezes em que esta equipa psicocomunitária do Hospital de Évora a visitou. A confirmação vai-lhe ser dada pela casa.

Catarina, 61 anos, vem à porta impecavelmente aprumada. Margarida Gião pede-lhe licença para avançar até às traseiras, passa pela cozinha, nada fora do lugar, e espreita por uma portinhola com vista para o quintal: há um único alguidar amarelo com poucas peças de roupa, um naperon branco muito limpo a boiar em água transparente.

Numa das fotografias que a equipa registou como manifestações da sua doença vê-se a mesma cozinha, mas com pratos rasos cobertos por um manto fofo de preto nascido dos restos de comida apodrecidos, das refeições que lhe são trazidas pelo centro de dia na aldeia. O cheiro a sujidade não se vê. No quintal costumam estar, por esses dias, uma sequência de alguidares alinhados a transbordar de roupa suja.

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Quando Catarina deixa de funcionar, o mesmo acontece à casa. O que mais lhe custa é não conseguir fazer a sua higiene. “Eu tento tomar banho, mas não consigo.” Chega a “tomar banho a chorar”, de tanto o esforço. “[A louça e a roupa] fico à espera de ter força para as lavar.”

“Tem tudo tão limpinho, muitos parabéns”, elogia a enfermeira. Catarina conta-lhes como se sente tão bem; apesar de não ter dormido nada nessa última noite, nem sequer tem sono. O médico Filipe Godinho pergunta-lhe se não se sente cansada e ela confirma que não. “Não dormiu e não tem sono, isso é preocupante. Acha que está a mudar de fase? Acha que está a ficar para cima?”

Dentro de uma terrina de louça, Catarina tem guardados papéis antigos, num deles tem o nome da doença que um dia um médico lhe escreveu, letras a esferográfica azul desbotadas: “Doença afectiva bipolar tipo 1 com ciclos rápidos.” É uma doença psiquiátrica com variações muito acentuadas do humor, com crises repetidas de depressão e “mania” (euforia). A doentes que têm mais do que quatro crises por ano diz-se que têm ciclos rápidos, explica o site da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares.

“Queremos que as coisas não andem para cima e para baixo, que andem mais certinhas”, diz o médico. Catarina foi diagnosticada há 23 anos, depois daqueles primeiros oito dias que se repetiriam. “Se me chamassem ao telefone, dizia que não estava; se viessem cá a casa, eu dizia que não estava.” E, na verdade, não estava — sem gosto, sem vontade. “Praticamente não estava viva.”

Já quando fica “para cima” até parece mentira as coisas que fez. Como é que ela, que é tão poupada, gasta nessas fases dinheiro que não tem? Como é que fala tanto? Quando acaba essa fase, revisita-se. É como se não fosse ela. “Como é que o esfregão do banho acabou na gaveta?”

Nem sempre se consegue adivinhar. Muitas vezes são imprevisíveis as mudanças. Um doente bipolar tem de se conhecer o suficiente para dar sinais de alerta, na fase depressiva precisa de antidepressivos, que na fase eufórica precisam de ser retirados, explica a enfermeira. A medicação precisa de estar sempre a ser ajustada. “Ligue, se notar que está a mudar”, diz-lhe a enfermeira, à saída. Há dez anos que não é internada.

Um sistema doente

Evitar recaídas e reinternamentos de pessoas com doenças mentais graves (doença bipolar, depressão major, esquizofrenia, sobretudo) é um dos objectivos da equipa, uma das quatro do distrito de Évora que funcionam desde 2007 e se deslocam uma vez por semana a um de nove centros de saúde. Aí fica um psiquiatra e um enfermeiro, enquanto a equipa vai a casa de doentes e depois segue-os com uma periodicidade que varia, muito condicionada pela escassez de recursos e pela filosofia do sistema.

É como se o próprio sistema também estivesse doente, disfuncional. Senão, vejamos: os resultados das equipas psicocomunitárias do Hospital de Évora estão à vista, congratula-se o director do Departamento de Saúde Mental, José Palma Góis. Tinham 80% de taxa de ocupação (camas com doentes), desde 2008 têm 50%. Parece um bom sinal, manter as pessoas em casa, junto das famílias, mas isso não é assim entendido pelos conselhos de administração dos hospitais que, muitas vezes, sentem as idas como desperdício de recursos. Isto, porque os hospitais continuam a ser financiados pelo número de consultas externas (no hospital e não fora dele) e de internamentos, explica o médico.

O coordenador nacional para a Saúde Mental, Álvaro de Carvalho, informa que está em estudo, na Escola Nacional de Saúde Pública, em Lisboa, um modelo alternativo de financiamento na área da saúde mental que passe a incluir também a prevenção, o apoio domiciliário, a reabilitação. Mas há anos que se fala em mudar o paradigma. E as equipas de apoio domiciliário continuam a ser experiências isoladas no país, sobretudo as que, além da prevenção de recaídas, são vocacionadas para a reabilitação dos doentes, explica.

No papel, num decreto-lei de 2010, previa-se que a rede de cuidados continuados passasse a incluir valências específicas para a saúde mental, “residências de treino de autonomia”, “residências autónomas”, “de apoio moderado”, “de apoio máximo”, apoio domiciliário. Nada avançou.

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Passou-se por uma fase em que se pensou em “reinstitucionalizar os doentes”, explica ao PÚBLICO Manuel Lopes, coordenador para a Reforma do Serviço Nacional de Saúde na Área dos Cuidados Continuados Integrados. “Estamos a retomar a orientação de ter, de novo, serviços que deixem que as pessoas fiquem nos seus contextos.” A ideia é ter criadas na rede, até final do primeiro semestre, 300 lugares para pessoas com problemas de saúde mental, entre residências assistidas, de apoio máximo, unidades sócio-ocupacionais e equipas de apoio domiciliário, ainda sem número definido.

Já não vinham a casa de Gertrudes Moreira há mês e meio. É uma das situações em que Margarida Gião sente que a doente e a família beneficiariam com visitas diárias da equipa. Alguém que perguntasse: já comeu? Tomou a medicação? Quer ir dar um passeio? Não se vai vestir?

Gertrudes Moreira sai da cama ao meio-dia. Tem vestido um robe acolchoado com favos brancos. Mal entram na casa, na aldeia de São Pedro do Corval, ouvem-se sons no andar de cima, umas chaves que giram, uma porta que bate com muita força, um homem que desce as escadas tão rapidamente que não dá tempo para lhe perceber as feições. É o filho Rogério, 35 anos. “Era um bom aluno, o melhor aluno, um bom filho, o melhor filho.” Quando estava no primeiro ano do curso superior de Economia, percebeu-se que sofria de esquizofrenia.

Receitar pequenos prazeres

“Rogério, anda cá falar às pessoas, cumprimentar. A culpa é minha, não devo ter sido boa mãe, a culpa é minha”, repete a mãe. Mas Rogério não aparece. “Não tira aquele casaco, não o deixa lavar”, comenta.

A equipa costumava vir por causa do filho, agora vem também por causa da mãe. “Refugio-me lá em cima”, diz Gertrudes sobre o tempo que passa no quarto. É a forma de se escapar ao seu dia-a-dia: o Rogério fechado em casa, o Narciso, o outro filho, deficiente mental profundo, que não fala, as discussões com o marido.

“Não é por estar na cama e deixar de ver que as coisas se resolvem”, diz a enfermeira. Gertrudes foi diagnosticada com perturbação de ansiedade. Não toma a medicação, porque diz que lhe faz mal ao fígado. O médico explica-lhe, em tom sereno, que só assim pode melhorar. Mas não basta: “Do que é que gosta de fazer?” “Só tenho vontade de pôr umas sementes na terra.”

A par da medicação, prescreve-lhe “pequenos prazeres” como esse, o de ir à horta. Na prática “receita-lhe”, numa folha A4 escrita à mão, uma rotina: pôr o despertador para as 10h, tomar a medicação a horas, almoçar, jardinar um pouco, dar um passeio a pé com o marido. Sair de casa. Mas o marido, Orlando Pisco, diz que às vezes não a deixa sair, porque sente que “é uma vergonha”, quando depois tem “de andar à procura dela” pela aldeia. Quando Gertrudes Moreira vem à porta despedir-se, de robe, há na sua rua olhares atentos que se fingem desatentos.

Ao isolamento causado pela doença junta-se, em sítios pequenos como Campinho ou São Pedro do Corval, a incompreensão.

Margarida Gião conta que numa das visitas a Catarina sentiram que o que mais precisava nesse dia era de sair de casa e, como vive sozinha, que o importante era acompanhá-la “ao café”. À saída, Catarina comentou: “Hoje, no café, trataram-me tão bem. Porque será?” “Porque nós fomos com ela”, constata a enfermeira.

Quando Catarina está muito agitada, há vezes em que sai porta fora. Como acorda cedo e gosta de andar, avança, sozinha, de madrugada, pela Estrada de São Marcos, meia hora para lá, outra meia hora para cá. Na aldeia, de 900 habitantes, sabe que há quem a observe. “Para o que lhe havia de dar, andar assim às voltas, sozinha, sem ter para onde ir”, disseram-lhe.

Fazem-lhe sentir que aquelas caminhadas, e muito do que faz, é estranho. Fazem-lhe sentir que também não foi normal naquele dia ter pedido uma bicicleta emprestada para ir dar uma volta, ela que sempre teve o desgosto de não ter uma dela. “Se falo muito, é porque estou maluca, se não falo, é porque estou parva.” Por isso, passa muito tempo em casa, mesmo quando está bem. “Estou farta de comentários.”

Catarina vive numa aldeia em que não sabem o que é isso de doença bipolar. Quando lhes tenta explicar a sua doença, respondem-lhe: “Eu também sofro dos nervos.”

Confirma-se. Numa breve sondagem junto ao café da aldeia ninguém sabe o que é isso de doença bipolar. Tudo o que seja achaques da cabeça são genericamente classificados como “sofrer dos nervos”. Maria Caeiro ouviu dizer que “há 35 qualidades de nervos”, o que resulta que haja “pessoas a quem dá para chorarem dias e dias”, como ela, “outras dá para se isolarem”, “a outras dá para andar às voltas”, como Catarina, que ninguém entende, a não ser aquela gente de fora que lhe bate à porta de vez em quando, pena que seja poucas vezes.    

Notícia corrigida às 10h31, após sugestão de correcção de um leitor. O nome da localidade é Campinho e não Campinhos.

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