Piero Messina quer filmar o espaço que existe entre as palavras

Para a sua primeira longa-metragem, um jovem cineasta siciliano convoca Juliette Binoche para uma história sobre a morte e o luto. À sombra de Rossellini, Ingrid Bergman e Anna Magnani, mas também de Bill Viola, Pirandello e Sokurov.

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Miguel Manso

“Numa cena que ficou de fora de A Espera,” conta o realizador Piero Messina, já perto do fim de meia-hora de conversa, “uma das personagens pergunta se é verdade que os sicilianos são muito silenciosos. E a personagem de Juliette Binoche respondia que não. São é muito calados, e para isso é preciso ser-se muito falador...”

Como bom siciliano que é – nascido em Caltagirone, em 1981 – e depois de ter falado muito durante meia-hora, Messina sorri. “É algo que vai ao centro do meu filme. A Juliette disse uma coisa muito bonita: neste filme, o importante não está nas palavras. Está no espaço que existe entre as palavras.”

Esse espaço entre palavras é, se quisermos, um limbo, um purgatório – e corresponde na perfeição ao ambiente que o cineasta cria em A Espera, a primeira longa-metragem após uma mão-cheia de curtas, estreada no concurso de Veneza 2015 e agora nas nossas salas. É a história de um luto por um jovem morto repentinamente, partilhado entre a mãe (Juliette Binoche) e a namorada (Lou de Laâge) à beira das celebrações da Páscoa. Jeanne, a namorada, chega à Sicília sem saber que Giuseppe morreu; Anna, a mãe, não é capaz de lhe dizer, e nessa recusa de enfrentar a dor constrói-se toda a relação entre as duas. Como uma “passagem de testemunho”, como explica Messina no átrio de um hotel de Lisboa, onde veio apresentar A Espera à Festa do Cinema Italiano.

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“Emocionou-me imenso a ideia de contar a história de uma mulher que, apesar de saber que o filho está morto, decide que ele não está morto, e faz tudo para prolongar esse momento, para convencer-se que nunca aconteceu”, diz o realizador. Por incrível que possa parecer, Messina revela que esse mecanismo de defesa é inspirado por um episódio verídico: “Um amigo meu francês contou-me a história de um homem que conhecia que tinha perdido o filho e que, durante o funeral, de modo quase automático, parou de falar do que acontecera. As pessoas que o rodeavam, como marca de respeito pelo seu modo de viver a dor, começaram também a evitar o assunto. Durante um dia inteiro toda a gente fingiu que nada tinha acontecido. Este homem começou a viver com a sua dor suspendendo-a, parando tudo… ”

Sobreposta à memória de infância das procissões da quadra pascal, esse episódio esteve na origem de A Espera. “O que é que as procissões pascais contam?”, pergunta retoricamente Messina. “Sem quaisquer implicações psicológicas ou religiosas, apenas dramaturgicamente, contam a mesma história. A de uma mulher a quem dizem 'o teu filho morreu' e, independentemente da evidência, ela sai de casa e começa a procurá-lo pela cidade. As pessoas que vai encontrando dizem-lhe 'o teu filho está morto', mas ela continua a buscar o filho vivo, como se nada tivesse acontecido. Um gesto de amor que me fascina imenso: uma mulher que não aceita a realidade e que, devido ao seu amor, consegue subvertê-la, e construir uma realidade alternativa.”

O peso do passado

Que essa mulher seja interpretada por Juliette Binoche não é, para Piero Messina, minimamente casual. “Não penso que exista hoje em Itália uma actriz como Juliette, capaz de interpretar esta personagem neste registo” - o mesmo registo de mãe-coragem, trágica e vulnerável, de Ingrid Bergman nos filmes que rodou com Roberto Rossellini, ou dessa força da natureza que foi Anna Magnani. “Na mouche!”, entusiasma-se o cineasta. “Quando eu e Juliette começámos a falar, em busca de um imaginário comum, a primeira referência de que falámos foi Anna Magnani. E Viagem a Itália foi muito importante para mim, é dos meus filmes preferidos, as procissões de A Espera são de algum modo inspiradas nele. Mas a verdade é que tudo o que faço vem das coisas que aprendi e a que fui exposto. Por exemplo, a abertura do filme nasce de uma emoção que senti no MOMA de Los Angeles, numa viagem que fiz há muitos anos, ao ver uma instalação de Bill Viola chamada Observance”. Que, não por acaso, é sobre o luto e a morte, inspirada pelos Quatro Apóstolos de Albrecht Dürer e por poemas do místico sufi Rumi.

No mesmo processo, o filme invoca também a figura tutelar do escritor e dramaturgo Luigi Pirandello, cuja peça La Vita che ti Diedi é creditada como inspiração livre de A Espera. “Na verdade, o guião já tinha tido quatro versões quando li essa obra,” explica o realizador, “por sugestão de um amigo que a conhecia e encontrou as semelhanças. O texto de Pirandello é um diálogo entre a mãe e um padre, enquanto o guião era muito diferente, mas aproveitei coisas da peça que ajudaram imenso a terminar o filme.”

Essa quantidade de citações e referências – normais num cineasta em tempo de estreia – acabam por levar à eterna questão do cinema italiano e do constante confronto entre um passado riquíssimo (o período entre 1945 e 1975, com a ascensão do neo-realismo e da comédia à italiana) e o ocaso que se lhe seguiu. ”A realidade que o cinema italiano viveu foi a de haver uma geração de realizadores para quem o peso do passado era demasiado grande,” admite Messina, “como um filho que não tem hipóteses de se elevar ao nível do pai. Conheço bem o cinema italiano, estudei-o, amo-o profundamente, mas está muito distante do que vivo hoje. Existe uma distância que me faz ver esse cinema como algo de extraordinário mas de externo, que não me pertence mas que me pode inspirar, ao mesmo nível do cinema que mais me influencia e mais me ajudou a criar um imaginário, que é o cinema russo de Tarkovsky, Sokurov...”

A influência dos russos pode ser inesperada mas não é surpreendente – um dos colegas de geração de Messina, Pietro Marcello, autor de La Bocca del Lupo e Bella e Perduta, também os invoca como inspiração maior. “Uma vez falei com Sokurov,” diz Messina, “que é para mim um dos maiores cineastas vivos. E a pergunta que ele se faz, mesmo com 50 filmes em carteira, é a mesma que eu me faço: como posso criar um cinema que seja audiovisual, onde o som e a imagem sejam tão importantes como o tema? Encontrar esse equilíbrio é o mais difícil para mim, e para aqueles que trabalham como eu. Existe sempre o risco de fazer com que a beleza das imagens faça perder os sentimentos das personagens. Em Itália não existem realizadores suficientes a pensar nisso – têm tendência a dar toda a força aos actores e às personagens e a simplificar do ponto de vista visual.”

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É a história de um luto por um jovem morto repentinamente, partilhado entre a mãe (Juliette Binoche) e a namorada (Lou de Laâge) à beira das celebrações da Páscoa

Uma opção que, para Messina, é um “equívoco”: “não faz sentido esquecer que o cinema também é imagem e som. Um filme que fale de um tema muito importante mas que seja feio tanto pode ser visto num écrã de oito metros de largura como num televisor ou num computador, e isso não me interessa. Quero outra coisa, quero criar uma relação com o espectador. A minha resposta é uma batalha: procuro esquecer-me do cuidado que ponho nos enquadramentos e trabalho apenas com os actores para tentar criar algo de ainda mais belo do que a imagem. Quando a Juliette me comovia mais do que a imagem, começávamos a encontrar um equilíbrio, e quando percebi como ela estava em estado de graça durante a rodagem, permiti-me começar a subtrair coisas da dimensão audiovisual, porque sabia que no interior da imagem havia coisas muito fortes.”

Essa subtracção – voltando ao início – tem tudo a ver com o silêncio e com a ausência. “É como se as imagens fossem o corpo do filme e o som a sua alma,” avança Messina antes de se despedir e passar à próxima entrevista. “Sabia desde o princípio que o silêncio iria ser extremamente importante, que muito iria depender do que ficava por dizer. E havia tanta coisa que ficava dita no olhar e na presença, tanto de Juliette como Lou de Laâge, que fomos cortando nos diálogos. Tudo o que era importante estava lá, mas sem precisar de ser dito por palavras.”

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