Deserto de super-Terras quentes existe mesmo pela Via Láctea fora
Equipa estudou 157 planetas extra-solares, em órbita de 102 estrelas. Não encontrou um único grande planeta rochoso cuja atmosfera tivesse sobrevivido perto da sua estrela, um resultado que surge ao fim de 20 anos de descobertas sobre estes mundos.
Super-Terras quentes? É verdade e, dito assim, há qualquer coisa que ressoa do imaginário da ficção científica. Mas não, essa é a designação que os cientistas dão aos planetas rochosos maiores do que a Terra e menores do que Neptuno situados em órbitas muito perto das suas estrelas. Tão perto que são autênticos fornos. Há mais de uma década que se sabe da existência de super-Terras noutros sistemas solares — mas o que acontece às atmosferas desses planetas quando se encontram muito próximos das estrelas hospedeiras? A resposta é: perdem-nas, porque a bolha de gases que os envolve é arrancada pela radiação das estrelas, relatou esta segunda-feira uma equipa internacional de astrofísicos na revista Nature Communications.
Ao serem despidas das suas atmosferas, é até provável que as super-Terras quentes de outrora se transformem em pequenos planetas rochosos. E, por isso, as regiões nas proximidades das estrelas estão desprovidas de super-Terras quentes. A esse nível, essas zonas consideram-se um deserto.
“Há já algum tempo que se teorizava que super-Terras em órbitas muito próximas da sua estrela poderiam vir a perder parte ou mesmo a totalidade da sua atmosfera através de um processo designado por foto-evaporação — isto é, o processo de destruição da atmosfera devido à incidência de radiação altamente energética proveniente da estrela. A ser verdade, então isto deveria traduzir-se numa ausência de super-Terras com períodos orbitais [o tempo que o planeta leva a completar uma órbita à estrela] curtos, também chamadas ‘super-Terras quentes’”, explica-nos o astrofísico português Tiago Campante, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e um dos autores do artigo científico na Nature Communications. “Até agora, a detecção desta ausência de super-Terras quentes — conhecido como o ‘deserto de super-Terras quentes’ — não tinha sido feita de forma peremptória. Este estudo põe um ponto final na discussão”, sublinha Tiago Campante, de 35 anos.
“Enquanto se observa de facto uma abundância de super-Terras frias — em órbitas mais afastadas e não tão fustigadas pela radiação proveniente da estrela —, observações com o telescópio espacial Kepler vêm confirmar a ausência de super-Terras quentes”, acrescenta o investigador. “Os envelopes gasosos destes planetas são completamente removidos por acção do fluxo de radiação proveniente da estrela.” É como se estivessem à frente de um secador de cabelo ligado no máximo, exemplifica outro elemento da equipa num comunicado, Guy Davies, também da Universidade de Birmingham.
Este estudo baseou-se na observação de 157 planetas extra-solares, ou exoplanetas — cerca de um terço dos quais (à volta de 52) são classificados como super-Terras. Em órbita de 102 estrelas, os 157 planetas foram detectados pelo telescópio espacial Kepler, lançado em 2009 pela agência espacial norte-americana NASA (mas que desde o início deste mês está com problemas e tem funcionado em “modo de emergência”), utilizando o chamado “método dos trânsitos”. A presença de um planeta em órbita de uma estrela é detectada quando passa à frente do disco estelar. Não só ele rouba um pouco de brilho à estrela como o faz de forma regular, o que denuncia que alguma coisa anda ali em órbita.
Mas este método de detecção de exoplanetas, um dos principais, é indirecto. “Não observamos directamente o planeta, mas sim o efeito por este causado quando cruza o disco estelar. Portanto, a informação que obtemos não passa do raio — ou tamanho — do planeta relativamente ao da estrela. Sem o conhecimento do tamanho da estrela, não podemos determinar o tamanho absoluto do planeta”, explica o astrofísico. Assim, para a caracterização das estrelas, utilizando ainda o telescópio Kepler, a equipa aplicou a técnica da asterossismologia, o estudo das oscilações das estrelas, que permite obter diversas informações, como a estrutura interna, a composição, a massa e o raio, tal como as vibrações de um sismo dão a conhecer o interior da Terra. “A asterossismologia permite-nos determinar o raio da estrela com elevada precisão e, por conseguinte, o raio do planeta”, explica ainda o astrofísico português, cujo contributo para este trabalho foi precisamente esta caracterização das estrelas.
Conclusão: a equipa não encontrou um único exoplaneta com duas a quatro vezes o tamanho (no sentido de diâmetro) da Terra em períodos orbitais de alguns dias. Isto confirma a tese do “deserto de super-Terras quentes” ao fim de mais de 20 anos de descobertas de planetas noutros sistemas solares espalhados pela nossa galáxia, a Via Láctea. “Se existissem super-Terras quentes, o Kepler tinha capacidade para as ter detectado.”
O primeiro exoplaneta foi descoberto em 1995, por Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório de Genebra (Suíça), em redor da estrela Pégaso-51, a 50 anos-luz de distância de nós. Era um gigante composto por gases, com metade do tamanho de Júpiter, o maior planeta do nosso sistema solar. E como estava muito em cima da estrela, dava-lhe uma volta completa em apenas 4,2 dias. Actualmente, o número de planetas extra-solares já ultrapassa os 2000, desde gigantes gasosos a pequenos rochosos, que terão superfícies firmes como as de Mercúrio, Vénus e a Terra, e que não são gasosos como Júpiter e Saturno.
E as pampas subjovianas
Quando perdem as atmosferas, um processo que é relativamente rápido face à idade do planeta ou estrela, as super-Terras também irão provavelmente encolher ao longo do tempo, devido à acção da radiação das estrelas. “Passariam então a ser uns ‘pequenos caroços rochosos’, que ainda poderiam ser detectados por um telescópio com a precisão do Kepler. Isto pode então querer dizer que há uma superabundância de planetas rochosos causada pela foto-evaporação das atmosferas destas super-Terras”, refere o astrofísico. “A perda da atmosfera pode reduzir em muito o tamanho do planeta, que pode deixar de ser classificado como uma super-Terra. Mas essa abundância destes caroços rochosos não foi detectada. Este artigo não apresenta nenhuma prova desta superabundância.”
A existir tal abundância, passaríamos, nesse caso, de um “deserto de super-Terras quentes” para um inferno de pequenos planetas rochosos muito colados às suas estrelas. A próxima grande missão dirigida à procura de planetas extra-solares é a do telescópio espacial Transiting Exoplanet Survey Satellite (TESS) da NASA, a lançar em 2017 e que poderá ajudar a descobrir e estudar estes planetas. Tiago Campante está envolvido na missão do TESS: faz parte de um grupo de trabalho que escolhe as estrelas para onde o telescópio vai olhar em busca de planetas.
Qual é então a importância do trabalho sobre o deserto de super-Terras quentes no estudo dos exoplanetas? “As super-Terras são os planetas mais comuns na nossa galáxia. Curiosamente, não existe nenhuma no nosso sistema solar”, salienta o astrofísico, referindo-se a grandes exoplanetas rochosos já distantes das suas estrelas. Já no nosso sistema solar, imediatamente a seguir à Terra segue-se, em termos de tamanho, ou diâmetro, Neptuno, que é quatro vezes maior do que o nosso planeta (quanto à massa, tem 17 vezes mais). “O resultado deste estudo tem um impacto profundo no nosso entendimento de como os sistemas planetários em geral evoluem e no papel desempenhado pela estrela central na sua evolução.”
Além do “deserto de super-Terras quentes”, os cientistas inventaram outra expressão para a raridade de planetas gasosos grandes, mas abaixo do tamanho de Júpiter, também em órbitas próximas das estrelas: as “pampas subjovianas”, numa alusão quer às grandes planícies da América do Sul, onde os arbustos e as árvores escasseiam, quer a Júpiter.
O primeiro planeta de todos a ser detectado, o tal em torno da estrela Pégaso-51, era um gigante gasoso da classe subjoviana e nesses primeiros anos de descoberta muitos dos que lhe seguiram também. Mas esse era um enviesamento observacional, porque eram mais fáceis de detectar. Eram grandes e estavam perto das estrelas. O tempo mostrou que, afinal, são aí “muito raros”, explica Tiago Campante.
Falta saber se esta escassez de planetas subjovianos encostados às estrelas, para onde migram depois de se formarem longe, se deve ao facto de os gases que os compõem terem sido eliminados por essa proximidade, evaporando-se por completo. Ou se, em vez disso, essa migração é que é rara. Outro mistério que aguarda respostas dos investigadores.
Ainda assim, o glossário sobre os exoplanetas que povoam a Via Láctea está cada vez mais rico. Super-Terras quentes, super-Terras frias, pampas subjovianas... O que mais se seguirá?