Aos papéis
Resolver o problema da evasão fiscal global e da ocultação de património divide-se em três partes: o quê, como e quando.
Há dois tipos de fatalismo a evitar quando falamos de crises sistémicas. Um é o de atribuir tudo à natureza humana e ficar à espera que ela mude. O outro é o de alegar uma hiper-mega-super complexidade especial do problema, que supostamente impede a sua resolução. Como seria de esperar, estes dois fatalismos foram o modo principal de resposta à questão dos paraísos fiscais desde a revelação dos “papéis do Panamá”. O que ambos nos pretendem dizer é: não há nada a fazer.
Somos então obrigados a recordar que, se alguma destas explicações valesse, a humanidade não teria conseguido substituir as monarquias absolutas por democracias, abolir a escravatura, criar as Nações Unidas, fazer e manter tratados de não-proliferação nuclear ou tapar o buraco de ozono na atmosfera do planeta, só para dar alguns exemplos.
Sim, todas estas eram questões morais e sistémicas que para serem resolvidas implicavam um grande esforço de coordenação contra aquilo a que alguns chamavam de “natureza humana”. Para resolver qualquer delas foi necessário enfrentar interesses não menos poderosos do que os de hoje. E no entanto foi possível conter e até (em alguns casos) erradicar estes problemas com soluções robustas e relativamente simples.
Resolver o problema da evasão fiscal global e da ocultação de património divide-se em três partes: o quê, como e quando.
Vamos à primeira, que não é excessivamente complicada: para ter ou manter licença bancária, os bancos têm de passar a dar toda a informação sobre a sua atividade offshore; é preciso saber quem tem o quê, com um registo integrado de acionistas de empresas e um registo atualizável de beneficiários finais dos ativos em banca; os testas-de-ferro devem ser legal e criminalmente responsabilizados por ação e omissão na lavagem de dinheiro; os bancos devem realizar as diligências devidas na identificação dos beneficiários finais. Também ajudaria criar uma unidade de combate ao crime económico e financeiro ao nível da UE.
No “como”, aliás, é esta a questão decisiva: a que escala agir? A nível nacional é demasiado difícil ter impacto, e esperaríamos uma eternidade para poder passar da inação a ter finalmente ações a nível global. A escala certa é a de um mercado (ou mais do que um) suficientemente grande para não poder ser ignorado, como provaram os EUA com a Suíça ou, apesar de tudo, a UE com a diretiva anti-lavagem de dinheiro. A ação à escala continental pode, aí sim, levar à adoção de medidas globais.
O “quando” agir é agora. A constituição da união bancária na UE dá escala e instrumentos, e os escândalos Luxleaks e Panama Papers puseram o Parlamento Europeu a trabalhar. Espera-se que nos próximos três anos haja propostas concretas que a Comissão e o Conselho acabem por aprovar. Para que isso aconteça, é preciso manter e aumentar a pressão pública.
Lembrem-se: este é o dinheiro que falta aos nossos hospitais e escolas e que, em termos mais gerais, permitiria erradicar a fome no mundo, combater as alterações climáticas ou ajudar a preparar-nos para o impacto da mudanças tecnológicas no mercado de trabalho.
Não o vamos recuperar aceitando a conversa de “é da natureza humana” ou “é demasiado complicado”.