Património contemporâneo em perigo nas Salinas de Câmara de Lobos
Foi recentemente publicado no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira o anúncio para um Concurso de Concessão de exploração do empreendimento das Salinas, em Câmara de Lobos. Este concurso reporta a uma área desenvolvida entre 2002 e 2004 pela Sociedade Metropolitana de Desenvolvimento, SA, cujo arquiteto que assinou o projeto e acompanhou a obra foi Paulo David sediado no Funchal.
O programa, de carácter público, incluía um restaurante panorâmico, uma piscina oceânica, estacionamento em cave, um jardim e praça e o arranjo paisagístico de toda aquela área por forma a dotar o lugar de percursos transversais, de ligação entre o alto da falésia e o nível do mar e percursos longitudinais e paralelos à costa, que contribuem para um percurso contínuo junto ao mar desde a Praia Formosa no Funchal até ao centro de Câmara de Lobos.
A obra realizada foi alvo da atenção da crítica nacional e internacional, reconhecendo a enorme qualidade arquitectónica e paisagística da intervenção, sendo como uma das obras mais relevantes no âmbito da produção nacional e europeia.
Em Março de 2016 é lançado pela mesma Sociedade uma nova concessão para aquela área. Aparentemente a presente concessão não garantiu a sua viabilidade. O restaurante já se encontra fechado há uns anos, mas a piscina e os percursos ribeirinhos são ainda usados pela população e turistas.
Para remediar a baixa rentabilidade do restaurante, decidiu a Sociedade Metropolitana incluir nesta nova concessão um edifício para fins de utilização de estabelecimento hoteleiro ou alojamento local, apoiado por um parque de estacionamento e espaços destinados a restauração.
A necessidade agora verificada de dotar aquele espaço das capacidades que permitam a sua rentabilização efetiva parece acertada, trata-se de modernizar aquele lugar e dotá-lo de mais valências complementares às existentes.
O programa previsto no concurso de concessão prevê uma lotação do espaço através de equipamentos com alguma dimensão, nomeadamente um parque de estacionamento em seis pisos para cerca de 150 lugares, um restaurante com dois pisos cerca de 700 metros quadrados de área e ainda bares de apoio para além do equipamento hoteleiro ou de alojamento local. Parecerá, numa análise rápida, que o programa é ambicioso e extenso para uma área de orografia difícil e de beleza indiscutível.
O projeto original é sensível às questões mais situacionistas, nomeadamente na forma como adoça os seus elementos arquitectónicos e paisagísticos na arriba e nas superfícies horizontais a cotas mais baixas, mas também na materialidade das intervenções, em contraste com a brutalidade e presença das massas pétreas.
Talvez por estas razões, este projeto e obra foi considerado na lista final de obras do Prémio Secil de 2008, prémio maior da arquitetura portuguesa e que naquele ano selecionou doze obras de entre todas as obras relevantes no território continental e ilhas para o biénio 2007/2008. Talvez ainda pelas mesmas razões foi premiado em Itália com a melhor intervenção construída em pedra, ou em Barcelona como o melhor espaço público.
Este projeto foi ainda, a par de outras obras do arquiteto, decisivo na atribuição a Paulo David da Medalha Alvar Aalto em 2012, prémio de reconhecimento internacional secundado pela Fundação Alvar Aalto em Jyvaskyla na Finlândia. Pémio de enorme prestígio, ocorre apenas de seis em seis anos e tinha já distinguido um outro arquiteto português, Alvaro Siza Vieira em 1988. Na altura do anúncio da distinção, poder-se-ia ler na ata do júri sobre a obra de Paulo David que “o trabalho de David é localmente enraizado, mas ao mesmo tempo universal. É um alerta oportuno de que a arquitetura pode ser calma, serena, lírica, poderosa e "não-espetáculo.” O júri acrescenta ainda que “a sua obra continua a busca constante por uma arquitetura adequada, relevante e autêntica que se funde com a paisagem. O trabalho respeita e responde à "história, tempo, lugar, cultura e tecnologia" - a sua arquitetura é uma resposta, não uma imposição.”
Valter Hugo Mãe escreve a propósito deste projeto que desconfiamos logo da natureza inerte dos materiais. Podem estar quietos ao olhar, mas há por ali uma inteligência que parece vir de tão profunda cultura, que apenas a natureza pode ensinar a construir assim. Como se a natureza construísse, por si só, assim.
O presente concurso de concessão não reconhece as qualidades inerentes àquele lugar das salinas, qualidades naturais e impostas pela mão do construtor. Não reconhece as qualidade inegáveis das obras de arquitetura e arquitetura paisagística ali existentes, que poderiam e deveriam ser potencializadas e incorporadas nas propostas de intervenção apresentadas pelos diferentes concessionários.
Perguntamo-nos, ingenuamente, porque desconsiderou a Sociedade Metropolitana para o Desenvolvimento o contributo imensamente necessário, e diria mesmo imprescindível do arquiteto autor do projeto original, por forma a obter uma resposta de inequívoca qualidade por parte dos concessionários que concorrem a este concurso.
Porque a contribuição do arquiteto autor salvaguardava a questão essencial da autoria da obra, questão que hoje, na apressada tomada de decisões a que concorremos diariamente, se torna ainda mais importante. Trata-se sobretudo de uma questão civilizacional. De perpetuar e reconhecer o trabalho de autoria, como um trabalho de continuidade e que admite mudança. Os lugares modificam-se, adaptam-se e por isso crescem e tornam-se mais significativos. Não é necessário destruir para evoluir. Não temos para isso nem tempo nem dinheiro.
Quem melhor do que o autor que moldou aquele bocado de território e lhe acrescentou equipamentos, de acordo com um programa que lhe foi entregue na altura, poderia agora, passados 12 anos e com um novo programa na mão, apresentar à Sociedade Metropolitana a sua viabilidade futura? Apresentando para isso um estudo que pudesse ser a base de concurso aos concessionários.
Tinha-se desta forma garantido que todos os concorrentes, seguindo um plano de crescimento fundamentado e devidamente integrado naquele lugar, pudessem agora responder com segurança e qualidade ao que lhes é proposto. Esta obra como outras constitui património construído, arquitectónico e paisagístico, reconhecido localmente, a nível nacional e internacional.
Arriscamo-nos a que com esta metodologia, não se garanta a continuidade qualitativa de um lugar tão importante e marcante no passeio marítimo a oeste do Funchal.
O Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) contém bolsas de sabedoria como a que se segue:
"CAPÍTULO ÚNICO-Art. 121.º As construções em zonas urbanas ou rurais, seja qual for a sua natureza e o fim a que se destinem, deverão ser delineadas, executadas e mantidas de forma que contribuam para dignificação e valorização estética do conjunto em que venham a integrar-se. Não poderão erigir-se quaisquer construções susceptíveis de comprometerem, pela localização, aparência ou proporções, o aspecto das povoações ou dos conjuntos arquitectónicos, edifícios e locais de reconhecido interesse histórico ou artístico ou de prejudicar a beleza das paisagens."
Mas o caso presente das Salinas é um entre muitos outros mais anónimos e dos quais nunca tomaremos conhecimento. Todos os dias a destruição pela construção acontece devido a questões programáticas e absolutamente necessárias, mas na maioria dos casos pelo desrespeito e leituras curtas da contínua evolução dos lugares da cidade e pela não consagração do Capítulo Único do RGEU. A cidade muda constantemente e é preciso saber ler essas evoluções. No caso das Salinas não houve essa leitura de evolução mas apenas e só o desejo de mudar.
Recordemos o caso das piscinas do arquiteto Keil do Amaral, no Campo Grande, em Lisboa, que está neste momento a sofrer a sua quase total demolição porque já não se adequa a um programa de ginásios e spa, nem às exigências de um concessionário espanhol para a sua devida rentabilização. Keil do Amaral fez parte da geração da mudança de 1948, a sua obra constitui um testemunho de uma arquitetura moderna em que o betão armado e a liberdade das formas constituía uma nova expressão arquitectónica. É património público. Foi preciso demolir e substituir, de forma a garantir-se o novo programa lúdico. Também aqui a cidade podia ter crescido e ter-se adaptado.
Ou o que vai ser do complexo do Instituto Superior de Engenharia e Gestão em Lisboa, lugar desenhado e reintegrado no tecido da cidade pelo arquiteto Gonçalo Byrne, quando é lançado um concurso público (a decorrer) para um dos edifícios existentes ainda por remodelar e para o qual já havia estudos e programa que o tornavam funcional com os restantes edifícios novos e existentes. Sem consulta prévia ao autor do projeto, decidiu a administração daquele Instituto promover um concurso que não inclui as propostas iniciais desenhadas por Byrne.
A questão da autoria é uma não questão. Não existe para as entidades que administram o território. Consequentemente o património não é reconhecido. Não se concebe que se possa construir com o construído, não se entende que a autoria possa ser um catalisador da evolução da cidade. Como deveremos reconhecer, classificar e proteger o nosso património construído? A arquitetura moderna e contemporânea também é património de interesse.
Se nada fizermos pelo reconhecimento e manutenção do nossos lugares como património arquitectónico e paisagístico, condenamos a arquitetura à sua extinção. Ainda vamos a tempo de poder ressuscitar a arquitetura. Ainda é possível agir em favor dos lugares construídos por arquiteturas modernas e contemporâneas. Caberá a todos e em especial aos arquitetos aprendermos com estas situações anómalas, por forma a podermos contribuir para elegermos o nosso património moderno e contemporâneo construído.
Arquitecto