Brasil em tempos de cólera
A discussão política tornou-se um campo minado. A intolerância subiu de tom, invadindo as ruas, o Facebook, as relações pessoais. É uma pergunta que muitos estão a fazer, desde que a crise pôs brasileiros contra brasileiros: o Brasil não era um país cordial?
É melhor pensar duas vezes antes de sair para a rua de vermelho no Brasil. Os testemunhos nas redes sociais tornaram-se rotina: no metro, na avenida, no supermercado há pessoas a serem hostilizadas por estarem vestidas com roupa dessa cor.
Se usar vermelho se tornou tão reactivo como numa praça de touros é porque é a cor do partido do governo, o PT (Partido dos Trabalhadores) e, claro, a prova mais empírica da ameaça comunista no Brasil. Há três semanas, um menino de nove anos foi intimidado na escola por usar uma T-shirt vermelha. Segundo o relato do pai da criança, os colegas disseram que ele era um “petista” (militante do PT) e que merecia ser espancado. A T-shirt em causa era uma reprodução da bandeira suíça: cruz branca sobre fundo vermelho. “Que país imbecil é esse ? Que ódio é esse que os pais estão passando para seus filhos?”, perguntou o pai da criança no Facebook.
É uma pergunta que muitos estão a fazer, desde que a crise política, associada a uma profunda recessão económica, cavou um fosso na sociedade e pôs brasileiros contra brasileiros. Como assim, o Brasil não era um país cordial? Não era a terra da superação, que não se deixa abater pelas dificuldades?
“Não é a primeira vez que o Brasil passa por uma crise dessas. Nem acho que é o fim da História. Mas se alguém disser que sabe o que está a acontecer, mente”, diz a historiadora Lilia Schwarcz, co-autora do livro Brasil: Uma Biografia.
O que está a acontecer remonta às últimas eleições presidenciais, em Outubro de 2014 (começaram aí as hostilizações a pessoas vestidas de vermelho), que foram extremamente renhidas e divisórias. Dilma Rousseff tem sido uma Presidente contestada e repudiada praticamente desde que foi reeleita, com manifestações sistemáticas e de grande escala.
Os defensores do governo insistem que o processo de impeachment em curso no Congresso, com vista a retirar Dilma do cargo, não é mais do uma tentativa de golpe de uma oposição que não se conforma com o resultado das eleições e quer tomar o poder de qualquer jeito. Para os defensores do impeachment, a corrupção prosperou como nunca nos últimos 13 anos de governos do PT.
A Operação Lava Jato – que expôs o sistema viciado dentro da maior companhia estatal do Brasil através do qual construtoras, executivos da Petrobras e políticos sugaram dinheiros públicos, é outro ponto de dissonância: celebrada pelos brasileiros que engrossam as manifestações contra o governo e que vêem no juiz Sérgio Moro um herói que está a purificar o país; criticada por apoiantes e simpatizantes do PT ou de esquerda, que consideram que os métodos de Moro e da sua equipa são selectivos e têm uma motivação política, por deixarem sossegadas figuras de outros partidos sobre as quais também existem suspeitas. Metade dos 65 deputados que fazem parte da comissão que vai avaliar o pedido de impeachment de Dilma foram indiciados por vários crimes, ou como noticiava recentemente o Los Angeles Times, “são acusados de mais corrupção do que a Presidente”.
Violência
A sensação de que o Brasil pode explodir a qualquer momento começou há um mês, quando o país acordou com a notícia de que Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente mais popular da democracia brasileira (de 2003 a 2011), estava a ser levado de casa pela polícia para prestar depoimentos por suspeitas de ocultação de património e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava Jato. Manifestantes pró e anti-Lula fizeram uma espera junto à sede da Polícia Federal em São Paulo onde ele estava a ser interrogado. Outros concentraram-se à frente do prédio onde o ex-Presidente mora. Houve confrontos e muitos analistas e comentadores alertaram para o perigo do aumento de violência nas manifestações programadas para os dias seguintes.
Um adolescente que gritou “Não vai ter golpe!” teve de ser escoltado pela polícia (de trânsito) na Avenida Paulista, em São Paulo, para não ser linchado por manifestantes contra o governo.
O arcebispo de São Paulo foi agredido no final de uma missa por uma mulher que o acusou de ser um “comunista infiltrado”.
O juiz do Supremo Tribunal Federal que mandou retirar a investigação sobre Lula de Sérgio Moro teve a sua casa e a do seu filho cercadas por manifestantes que o acusavam de ser um “traidor”. Uma faixa com o seu nome seguido de “cabrita do Lula” foi pendurada no edifício do Supremo Tribunal, em Brasília. Um caixão onde se lia “Teori” (nome do juiz), “PT” e “STF” (Supremo Tribunal Federal) também fez a sua aparição. Na sequência dos protestos, a segurança do juiz e da sua família foi reforçada por ordem do ministro da Justiça.
Um escritor e membro da Academia Brasileira de Letras escreveu na sua coluna na Folha de S. Paulo: “Desejo que Dilma e Lula se f....”. No domingo de Páscoa, dia da Ressurreição.
“Nunca pensei que seria necessário pedir isso num texto, mas – por favor – tenham calma neste momento”, escreveu o jornalista Leonardo Sakamoto, autor de um popular blogue no UOL.
"Disso a gente não pode falar"
Há duas semanas, Renata Baltar foi a uma hamburgueria num bairro paulista de classe média-alta comer com uma amiga. O lugar “estava bem cheio”, na sua maioria jovens que, àquela hora da madrugada, tinham provavelmente saído de uma festa, como ela. “Uma certa hora, o pessoal que estava no restaurante começou a insultar a Presidente do nada”, conta Renata, 28 anos. Ela ficou quieta até que, na mesa ao lado, “um cara jovem, no máximo 30”, gritou “Dilma vagabunda!”, sinónimo de vadia, puta. Renata disse-lhe que ele podia “dizer muitas coisas, que ela é má presidente, que é incompetente”, mas que não devia chamar uma mulher de “vagabunda”. Ele insultou-a, chamou-lhe “petista filha da puta”, gritou que ela merecia apanhar, entre outras coisas violentas.
“Está tão nervosa essa coisa da política que tem bastante gente a usar isso para justificar a sua própria violência”, diz Renata, que trabalha no departamento de empréstimos do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Ela nem sequer se considera “pró-governo”. “Sou contra o impeachment. É a minha única posição. Enquanto não houver nenhum tipo de indício criminoso, acho muito complicado tirar a Presidente. A nossa democracia é muito recente para a gente brincar com ela.” Os seus pais participaram na grande manifestação de 13 de Março em defesa do impeachment. “Mas, em geral, a gente consegue aceitar muito bem” as diferenças, conclui.
“Você tem famílias que agora fazem acordos: ‘disso a gente não pode falar’. Isso é muito ruim porque lidar com a diferença de opinião só pode ser bom. Isso está a faltar no Brasil”, diz Lilia Schwarcz.
A polarização política invadiu as relações pessoais. Namorados rompem, famílias suspendem o tradicional almoço de domingo, o ódio espuma nas timelines brasileiras. O psicanalista Christian Dunker vê sinais crescentes disso no seu consultório em São Paulo. “Quando a política estava fora da conversa, quando era uma coisa para chato militante, você achava que estava vivendo aquela bolha imaginária do ‘nós’: ‘gente do bem, limpinha, gente como eu’... De repente você encontra um velho amigo de escola e descobre que ele é um ‘vermelho’, que ele se tornou um perigoso, um facínora. É a descoberta do estranho muito dentro do familiar. A mesma coisa aplica-se a relações no trabalho, onde normalmente não se fala de política. Porque cada um está iludido de que os outros pensam como ele.”
“No Brasil é uma coisa inédita. Antes isso era coisa de time de futebol: o Flamengo brigava com o Fluminense”, diz o escritor paulista Ricardo Lisias, 40 anos. “É difícil lidar com isso, não faz parte da tradição brasileira. A violência aqui ficava agregada às classes baixas, na periferia. Agora é geral. Agora tem briga na Avenida Paulista e o motivo é política.”
Ricardo acredita que uma das causas da polarização é o ressentimento das elites brasileiras por verem os seus privilégios históricos serem postos em causa pelos avanços sociais promovidos nos governos do PT. “Antes o acesso à universidade pública era só da classe alta, que dizia que era assim porque ela é que tinha o mérito. Agora que a classe baixa está a ocupar lugares, fica claro que é uma questão de poder e não de mérito da classe alta. É meio claro que a classe alta está com raiva, ódio. Você imagina: o filho do banqueiro ocupa na universidade a mesma sala que o filho da mulher da limpeza. Eu moro num prédio de elite. Tenho vizinhos que reclamam que o porteiro agora também viaja para a Europa. A elite brasileira perdeu a vergonha de ser conservadora. Antes ela tinha vergonha.”
Lilia Schwarcz admite a possibilidade de o ressentimento de classe ter o seu peso no jogo de forças do Brasil polarizado, mas recusa explicações definitivas. “Isso seria dividir o mundo em preto e branco. Senão como é que você explica a crise económica no país? Há muita gente sem emprego. São problemas reais.”
Apesar do clima de incerteza e do radicalismo de posições, a historiadora acredita que o momento actual é sintomático de uma maior participação política da população brasileira.
“Os brasileiros durante muito tempo foram acusados de serem despolitizados, quando comparados com outros países da América Latina. Mas mais brasileiros têm acesso a educação, mais brasileiros têm opinião. Desde a Constituição de 1988 e o período de regularidade democrática, os brasileiros são mais participativos, doa o que doer. Agora, a democracia tem um lado óptimo, que é quando as pessoas dizem o que você concorda. Mas o bom jogo democrático é: vai para a rua o que você concorda e vai para a rua aquele que discorda.”
Conversa de domingo
Relações estão a terminar por WhatsApp: recentemente, quando o país estava ao rubro por causa da nomeação de Lula para o governo e da divulgação das escutas telefónicas feitas ao ex-Presidente, uma pediatra em Porto Alegre recusou atender um bebé de um ano que acompanhava desde o nascimento e mandou mensagem para a mãe dizendo que era por causa da filiação partidária dela – a mãe do bebé é uma ex-vereadora do PT.
“Tem uma quantidade imensa de pessoas que não estão acostumadas a ter opinião política, que não estão acostumadas a conviver e a entender que é uma riqueza você ter alguém que pensa diferente de você”, diz Christian Dunker. “Para aquele que não está acostumado a estar no espaço público a diferença tem que ser eliminada. A diferença significa que o outro cara é um idiota. Se ele fosse esclarecido, se ele fosse para a escola, pensaria exactamente como eu.”
As redes sociais, que, mais do que as ruas, se tornaram uma trincheira, amplificam esse fenómeno. “Você só tem os seus amigos e, se alguém falar uma coisa que você não gosta, você exclui. O Facebook só te manda mensagens daquilo que você curte. Isso é um processo de construção artificial de uma realidade humana onde a diferença vai ser polida, desbastada. E quando você a encontra ao sair na rua, você diz: ‘Opa, não estou acostumado’”.
Segundo o psicanalista, o que está a acontecer no Brasil hoje é reflexo da “entrada de uma massa” que não estava habituada a falar de política publicamente e que está a dar os seus primeiros passos. Pessoas cuja referência política, até aqui, era “aquela conversa de domingo, em que o tio fica dizendo que bons eram os tempos em que a gente tinha ditadura”. É uma caricatura mas, diz Dunken, “essa conversa caseira, muitas vezes mal informada, saiu para as ruas”. “Porque é o que as pessoas têm para dizer. É como elas até aqui mais ou menos participaram e se envolveram. Quando estão em público reproduzem a conversa de domingo.”
O que explica por que é que “um discurso como o da simples moral purificadora” – o desejo, no campo anti-governo, por uma autoridade que faça uma limpeza no país, seja ela militar ou judicial – se tornou tão potente politicamente. “Porque, nesse, todo o mundo participa. Esse eu estou acostumado. Eu não tenho que entender o processo de institucionalização, não tenho de entender as leis, não tenho de entender o que é o espaço público. A gente está simplesmente transportando as regras que valem para a família – antigamente cordial, agora incordial – para pensar a política”, diz Dunken.
“Esse é também um momento de aprendizagem, de educação política do Brasil. Isso começa com ódio, com coisas que a gente não gosta, mas que é parte do processo. Claro que você tem todo o tipo de coisa demoníaca saindo do baú, mas ao mesmo tempo você tem um processo de transformação não só institucional mas um novo reposicionamento das pessoas diante de um futuro possível.”
Nada como um psicanalista para descomplicar.