A resistência da Constituição

Em democracia, um texto constitucional com 40 anos é uma enorme prova de resistência, apesar das alterações.

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Ao contrário das Constituições de raiz anglo-saxónica, curtas, (quase) intocáveis, meras guardiãs de princípios e valores, o texto da nossa lei fundamental parece um organismo vivo onde as marcas do tempo vão cicatrizando à medida que o efeito de novas soluções o vão libertando de roupagens datadas. Mas, ao contrário do que se podia pensar, esta não é apenas a característica da Constituição de 1976, que hoje cumpre 40 anos de idade e que já foi revista sete vezes. Desde 1822, quando arranca o ciclo das Constituições liberais, que há-de perdurar por mais de um século, até ao texto plebiscitado do Estado Novo, em 1933, que a Revolução de 25 de Abril derrogará, as Constituições portuguesas têm sido o espelho fiel da história contemporânea de Portugal em todas as suas vertentes políticas, económicas e sociais. Todas traduzem as revoluções, guerras e golpes de onde emanam, todas são profundamente ideológicas, todas são muito programáticas, umas são mais minuciosas do que outras. Foram monárquicas e republicanas, religiosas e laicas, liberais e conservadoras, autoritárias e democráticas, universalistas e censitárias, parlamentaristas e presidencialistas, acentuando esta ou aquela vertente – ou seja, as nossas Constituições emanaram da realidade, nunca pairaram por cima dela.

É curioso que as quatro décadas da nossa lei maior se comemorem num momento de grande dinamismo do sistema político. Temos um governo cuja arquitectura deixou de fora o partido mais votado, destruiu o famoso “arco da governação” e acabou por encontrar o seu “cimento” no compromisso de cumprir a Constituição da República. Elegemos pela primeira vez um Presidente que chegou a Belém descomprometido de partidos, que pagou a sua própria campanha e que não precisou de cartazes e fanfarras para se fazer entender. Assistimos à recomposição parcial da direita, através do CDS, enquanto um PSD ainda atordoado pelos resultados eleitorais de Outubro se tem mostrado capaz de articular uma mensagem coerente e de um assomo de competência para delinear o tal projecto alternativo. Veremos o que sai do congresso deste fim-de-semana.

Mas se estas transformações são positivas, na medida em que fazem prova da capacidade de regeneração do sistema num quadro democrático inatacável, a verdade é que não se pode iludir a existência das feridas abertas num país profundamente marcado pelas consequências da crise. Feridas visíveis na desesperança, nas bolsas de pobreza e nos níveis de desigualdade, dia-a-dia de tantos portugueses já esquecidos das utopias de uma Constituição que, em grande medida, ainda promete a “liberdade a sério”, só possível com “paz, pão, habitação, saúde, educação”, na síntese feliz de Sérgio Godinho. Neste quadro, que retrata as nossas circunstâncias, é impossível não reparar nas nuvens carregadas que se vão acumulando sobre uma Europa à deriva e um mundo cada vez mais desregulado. O futuro é um lugar cada vez mais incerto, até porque muitas das variáveis não estão exclusivamente nas nossas mãos: fazemos parte da União Europeia e acumulámos uma dívida colossal que nos mina o crescimento. Resistirá a actual Constituição a este caminho de pedras? Em democracia, um texto constitucional com 40 anos é uma enorme prova de resistência, apesar das alterações. Mas é natural que haja desafios de adaptação por causa da Europa e da nossa situação financeira. E veremos como se ajustam os equilíbrios políticos.

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