O cinema lido pelos modernistas

Joana Matos Frias, tirando umas pinceladas sobre pintura, interessa-se pela relação do meio literário modernista – o mais ligado à poesia – com o cinema: Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português

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Douro, Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira

Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português parece (e é) um título demasiado ambicioso para um livro com pouco mais de cem páginas. Como professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a autora, Joana Matos Frias, tirando umas pinceladas sobre pintura (e a figura do pintor Julio, irmão de José Régio), interessa-se quase exclusivamente pela relação do meio literário modernista – o mais ligado à poesia – com o cinema. E este sobretudo como objecto de curiosidade (ou desprezo) por parte dos ditos modernistas (neste particular, o título é exacto). De fora, ficam também grandes considerações sobre o cinema feito em Portugal no período abarcado pelo livro (dos anos 10 a meados dos anos 30) ou possíveis ligações dos cineastas portugueses ao movimento modernista. A excepção, óbvia, é António Ferro, que nem poderá ser considerado propriamente um cineasta (no sentido de alguém dedicado à actividade do cinema), mesmo se chegou a escrever argumentos para filmes.

Por outro lado, Cinefilia e Cinefobia não é um livro pensado de raiz, antes uma colecção de textos da autora para outras publicações ou para colóquios e conferências. Essa falta de unidade nota-se em uma ou outra repetição. Por exemplo, quando Matos Frias escreve sobre o apreço de Régio por Douro, Faina Fluvial de Manoel de Oliveira em capítulos diferentes, usa quase as mesmas frases. E nota-se, principalmente, na heterogeneidade dos diferentes textos. Se alguns são dedicados especificamente à relação entre um dado autor e o cinema, centrando-se no que deixou escrito sobre a sétima arte, como Adolfo Casais Monteiro na revista presença; noutros, o que se observa é a influência dos filmes na obra de certo autor, dando-se menos importância às suas opiniões sobre este – nos casos de José Gomes Ferreira e Almada Negreiros, dos quais a autora analisa poemas (ou excertos) para revelar, no conteúdo ou no estilo, a presença do cinema. Só um capítulo conjuga as duas aproximações – sobre Fernando Pessoa –, naquele que é o texto mais trabalhado.

No entanto, embora se possa continuar a lamentar a falta de textos sobre cinema (ou à volta do cinema, como neste caso) escritos a pensar num todo, isso não tira validade ao livro de Joana Matos Frias. Pois, se autora reduz o escopo da sua análise à literatura modernista e a quatro ou cinco autores mais proeminentes, cada texto acrescenta informação ao anterior (ou posterior) e ajuda a iluminá-lo. Mais, fica claro o desinteresse geral da primeira geração do modernismo português (a do Orpheu) – com as devidas excepções de Almada Negreiros e de António Ferro –, evidenciado por um certo desdém pelas artes visuais (face à palavra) e a ideia de que o cinema seria uma espécie de teatro filmado, sem o valor deste. E o enamoramento da segunda geração (a da presença), com destaque para Régio e Casais Monteiro, pelas manifestações mais “artísticas” da sétima arte (mais próximas da poesia e afastadas das amarras narrativas), como a cinematografia soviética e o expressionismo alemão, sem esquecer os grandes cómicos do mudo, como Charlie Chaplin e Buster Keaton.

Podem não ser todas as “vias” do modernismo português, mas o próprio facto de a autora pegar em alguns casos particulares (ainda que os mais relevantes, talvez) em vez de tentar perspectivar o todo, acaba por tornar Cinefilia e Cinefobia no Modernismo Português menos abstracto, não perdendo, ainda assim, a sua universalidade. Quanto aos “desvios” do subtítulo do livro, estes referem-se a outros modernismos, de alguma maneira, próximos ao português: o espanhol e o brasileiro. Próximos, não tanto geografica ou linguisticamente como pelos paralelismos que Matos Frias encontra. Em Espanha, na La Gaceta Literaria, criada no mesmo ano da presença, de onde saiu o primeiro cine-clube do país, dirigido por Luís Buñuel (que também escrevia para a revista). No Brasil, com a má recepção do público e os elogios dos intelectuais a “Limite” de Mário Peixoto, análogos aos de Douro, Faina Fluvial, pateado à altura da estreia e defendido acerrimamente por alguns críticos.

Por fim, a escrita de Joana Matos Frias escapa-se ao hermetismo habitual da produção académica. Ainda que se muna de uma vasta bibliografia, patente nas profusas notas de rodapé, a autora procura sempre a claridade e a simplicidade nos seus textos, sem necessitar de cair em qualquer facilitismo. O resultado é tão didático, no melhor sentido da palavra, quanto interessante.

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