Em Sintra há mais crianças abandonadas ou entregues a si próprias
Relatórios das duas comissões de protecção do concelho mostram que “há crianças muito pequeninas sem supervisão de manhã e à noite”. Situações de exposição à violência doméstica e casos de negligência quase duplicaram.
Em 2014, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Sintra Oriental já tinha alertado para o aumento de casos de crianças e jovens abandonados ou entregues a si próprios nalgumas freguesias do concelho. Nesse ano, tinha havido um aumento de quatro para 28 crianças nessas situações. Em 2015, houve novo aumento e esta comissão abriu 40 novos processos de crianças abandonadas ou entregues a si próprias. Ou seja: mais 12.
Os relatórios de 2015 das CPCJ de Sintra Oriental e Sintra Ocidental são apresentados na tarde desta sexta-feira no Palácio Valenças. Ambas permaneceram em 2014 entre as cinco (das 308 comissões de todo o país) com maior volume processual, juntamente com Loures, Lisboa Norte e Amadora, que voltou a liderar com 2024 processos. Já em 2015, Sintra Oriental trabalhou 1656 processos e Sintra Ocidental 1592 (entre os novos e os transitados do ano anterior).
Num dos casos de abandono em Sintra Oriental, foi a própria criança que pediu ajuda à CPCJ com morada no Cacém. Os pais emigraram e deixaram o rapaz de 16 anos a viver num quarto alugado. Nos primeiros meses, enviavam dinheiro. Depois deixaram de o fazer, e a criança não tinha como viver e não tinha ninguém de família, conta Sandra Feliciano, presidente da CPCJ de Sintra Oriental.
Foi accionado o mecanismo de urgência ao abrigo do art.º 91 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens, que permite a retirada sem consentimento dos pais, seguindo o processo para tribunal. Foi o que aconteceu com pelo menos cinco crianças em Sintra Oriental — do total de 11 situações de retiradas de urgência sem consentimento em 2015. Quatro outras crianças irmãs estavam em casa sozinhas e o cuidador tinha menos de 15 anos.
Sandra Feliciano fala em “aumentos preocupantes nos dois últimos anos” de situações em que os pais estavam fora do território nacional, porque emigraram ou estavam ausentes a trabalhar longas temporadas no estrangeiro.
A presidente desta CPCJ volta a dizer o que disse no ano passado: “Os números já são preocupantes, mas acreditamos que haverá muito mais situações de abandono” desconhecidas da comissão por serem casos em que as crianças mais velhas conseguem efectivamente cuidar das mais novas. Ou situações de miúdos muito pequenos “sem supervisão de manhã e à noite”, mas de que não há conhecimento, porque ninguém sabe ou ninguém denuncia, explica.
Quando os pais emigram, a situação é de abandono. No caso de ficarem sozinhas por longos períodos, de manhã, à noite ou aos fins-de-semana, a ausência não é permanente mas temporária, e diz-se que as crianças estão entregues a si próprias.
Crianças cuidam de crianças
Essas situações foram encontradas em crianças de todas as idades, incluindo três bebés até aos dois anos. “Duas destas crianças ficavam com um irmão de oito anos e uma delas ficava com uma irmã com menos de dez anos”, explica Sandra Feliciano. Nesses casos, não era uma ausência permanente.
Também foram sinalizadas crianças entre os três e os cinco anos a deambular, na rua, sozinhas. E duas crianças de oito e dez anos ao cuidado de uma irmã mais velha. Neste caso, não houve intervenção da comissão porque a irmã tinha 18 anos. “Não foi considerada a ausência de suporte temporário, mas preocupa-nos porque também a irmã de 18 anos tem de ser cuidada.” Os pais tinham emigrado.
Também foram registadas situações de bebés de menos de dois anos sozinhos em casa com um irmão de oito anos (num caso) e com uma irmã com menos de dez anos (noutro caso). Em ambos os casos, as mães trabalhavam à noite e fins-de-semana — e as crianças ficavam sozinhas por longos períodos. Em pelo menos um deles, estavam fechadas em casa e a PSP colaborou na intervenção de urgência depois da denúncia e sinalização. Sandra Feliciano também descreve seis casos de crianças que ficavam entregues a irmãos de menos de 15.
Os relatórios anuais da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) mostram que o abandono tem aumentado todos os anos, pelo menos desde 2010. Nesse ano, houve 1224 situações de abandono registadas. Em 2014, de acordo com o mais recente relatório da comissão nacional, foram sinalizadas 1456 situações por abandono.
Porém, no mapa de situações de perigo de crianças e jovens com processo aberto nas 308 CPCJ de todo o país, as situações de abandono ou entregues a si próprias representam uma pequena minoria (2%). Esta problemática é ultrapassada pela forte presença da exposição à violência doméstica, exposição a comportamentos que comprometem o desenvolvimento e o bem-estar da criança ou do jovem, negligência ou maus tratos físicos.
Casos graves em 2016
Em Sintra Ocidental, aquilo que mais aumentou foi a exposição das crianças a violência doméstica entre os pais — os casos quase duplicaram, ao passarem de 87 para 160 — e as situções de negligência, que mantiveram uma forte expressão nas duas comissões e passaram de 196 para 378 porcessos só em Sintra Ocidental.
Também houve mais situações de urgência, em que as sinalizações foram feitas no limite e “por vezes não foi possível ajudar a família, e para ajudar foi preciso retirar a criança”, explica Catarina Fernandes, presidente da CPCJ de Sintra Ocidental. Como em anos anteriores, a grande maioria das medidas passou pelo apoio aos pais (679 situações em 2015), longe dos 40 casos em que as crianças foram acolhidas em instituições e das 35 crianças cuja situação se resolveu através de uma medida junto de outro familiar.
Os primeiros meses de 2016 revelaram números mais graves, no que respeita a situações de urgência. Só nos dois primeiros meses deste ano, a CPCJ de Sintra Ocidental recebeu 22 situações de urgência de crianças em perigo, em situação limite, em que houve retirada para acolhimento ou acordo com os pais para uma medida de apoio à família.