Corpos que se limpam de um mundo feito num oito

Depois de Mais pra Menos que pra Mais, Vera Mantero volta a colocar o ambiente e a ecologia no centro do discurso artístico. O Limpo e o Sujo, de sexta a domingo no Maria Matos, é uma tentativa de descontaminação do mundo.

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O Limpo e o Sujo de Vera Mantero Tuna
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O Limpo e o Sujo de Vera Mantero Tuna

Não querendo fazer uma tradução literal das ideias sobre ambiente e ecologia que foram tomando conta do seu discurso (pessoal e artístico) nos últimos anos, Vera Mantero partiu para a criação de O Limpo e o Sujo ao desafiar os dois bailarinos que sobem ao palco consigo, Elizabete Francisca e Volmir Cordeiro, e pediu-lhes para partilharem as danças que lhes circulavam no corpo. As coordenadas iniciais, que colocavam a futura coreografia no espaço da ecologia, estavam, no entanto, já traçadas e os movimentos deitados para fora por cada um surgiram com esse enquadramento, originando uma lista de palavras que anotaram como definição daquilo que se viam fazer: martelar, espremer, escorregar, pressionar, varrer, esfregar, arrancar.

O Limpo e o Sujo, peça apresentada desta sexta-feira a domingo no Teatro Maria Matos, em Lisboa, e integrada no ciclo As 3 Ecologias (a 11 e 12 de Novembro será a vez do Rivoli, Porto), parece-se com um longo processo de limpeza, lavagem e expurgação dos intérpretes, como que procurando colocar-se a salvo da contaminação do mundo. Talvez porque desde há alguns anos Vera Mantero deixou de acreditar na capacidade transformadora da arte em salvar o mundo, desta vez optou por regressar a um discurso eminentemente dançado, recusando a habitual interacção com outros elementos. “A certa altura deste processo”, conta ao PÚBLICO, “achei que tinha mesmo de ser uma dança porque, entre pôr as ideias e pensamentos na mesa e começar a fazer coisas, não vi outra hipótese. Senti que era muito bom poder fazer só uma dança, uma espécie de alívio neste momento.”

Um alívio de quem não se quer meter em explicações, tão saturadas que, por uma vez, apetecia-lhe não explicar nada, colocar tudo nestas mãos que esfregam rosto, braços e pernas, lavam a vista, buscam animalidade, tentam limpar o ar e colocam o corpo no centro da acção. No centro da acção, diz a coreógrafa, lembrando também os corpos que, por estes dias, se fazem explodir. “Isto está tudo tão feito num oito actualmente, tão insuportável, que uma pessoa fica sem respostas e sabe bem poder articular as coisas de uma forma não-verbal.”

O mundo e os indivíduos

Voltando atrás. Em 2014, Vera Mantero montou um ambicioso programa em parceria com o Maria Matos e a Culturgest intitulado Mais para Menos que pra Mais, em que palestras, performances e concertos se desenhavam em torno de hortas urbanas e da sustentabilidade alimentar. Das hortas criadas no âmbito do projecto, uma delas, a maior de todas, continua activa, envolvendo pessoas que antes não se conheciam ou não trocavam uma palavra entre si, forjando um exemplo de comunidade envolvida nesta ideia de que se podem “implementar questões ambientais nas nossas vidas sem termos de ir viver para o campo”, como explica a coreógrafa. Daí resultava a consequência evidente de que, afinal, a arte podia implicar-se na vida das pessoas e ajudar também ao desabrochar de relações e diferentes formas de vida.

Com a ideia de explorar agora outras dimensões da sustentabilidade – energética e hídrica, por exemplo –, o Maria Matos e Vera Mantero estabeleceram um plano para o ciclo As 3 Ecologias, a partir do livro homónimo do pensador Félix Guattari, novamente composto por espectáculos e conferências, em que O Limpo e o Sujo está integrado. E esta nova criação parece fazer o caminho inverso da experiência desenvolvida com as hortas: é a ética e a prática de uma outra forma de vida a imiscuir-se na arte, resultado da aproximação da coreógrafa do movimento da transição interior (em que se questiona o porquê de a Humanidade ter chegado a este ponto de destruição do ambiente mas também das relações pessoais) –, altura em que deixou de sentir que a sua condição de artista a votava à sensação de ser sempre a pessoa menos útil destes grupos de ecologistas e agricultores.

O livro de Guattari, enquanto enunciado da questão ambiental, da questão social e da subjectividade individual, e o modo como tudo isto se encontra interligado, encontra-se bem à vista por toda a peça O Limpo e o Sujo. O facto de coreografia e ciclo coincidirem em termos temáticos é classificado por Vera Mantero como “uma sorte de fazer uma peça cujos temas fazem desabrochar uma série de outras propostas à sua volta”. Se a ligação da dança à questão ambiental se sente de forma evidente na forma como os três bailarinos se tentam descontaminar da porcaria do mundo, a sujidade é também evocada como algo que limpa o corpo – no sentido em que combate a híper higienização de uma sociedade tão obcecada com a limpeza que há quem viva como “naqueles anúncios em que está tudo tão limpo que até se pode lamber o chão”, ri-se.

A partir das “danças brutas e escortanhadas” que foram surgindo no processo criativo a três, a peça foi-se depois definindo em dois discursos (as outras duas questões de Guattari) que acontecem entrelaçados: um colectivo, em que os três se contaminam com a mesma gestualidade e a mesma forma de limpar o ar e o corpo; e processos autónomos que, partilhando uma matriz comum, parecem reforçar a ideia de que, encontrada uma comunidade, há ainda e sempre que operar uma transformação a nível individual. Talvez seja isto que, involuntariamente, Vera Mantero ande a querer dizer com a sua crença de que a arte é insuficiente para mudar o mundo. Pode “apenas” ajudar a mudar indivíduos. O que não é coisa pouca.

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