A acção do poema
Mais um livro póstumo, onde a voz mais elevada da poesia de Herberto Helder se pode apreender nalguns poemas, os suficientes para justificar esta edição.
Depois de Poemas Canhotos, eis o segundo livro póstumo de Herberto Helder. Chama-se Letra Aberta e reúne trinta e três poemas inéditos, escolhidos por Olga Lima. A inauguração do espólio do poeta já sem a sua tutela (o livro anterior tinha sido deixado pronto para publicação) foi mais rápida do que era previsível, mas é gratificante: há neste livro um punhado de poemas que ascendem aos cimos da melhor obra herbertiana. E na comparação com o livro anterior, este tem muito a ganhar. Na recepção crítica da poesia de Herberto Helder, esta ideia de que nem tudo se equivale e de que também há momentos fracos é recente, foi suscitada pelos últimos livros, e é a resposta que obteve a um novo desafio (implicando não apenas decisões editoriais, mas também representações e imagens públicas) que o próprio poeta decidiu fazer, por insondáveis determinações, que revogaram severas determinações que se tinham colado à sua imagem como uma segunda natureza. Ecos deste embate, temo-los ainda nalguns poemas deste livro, aqueles que provavelmente serão por estes dias mais citados, mas que estão longe de ser o que de melhor nele podemos ler.
Herberto Helder é muito melhor no exercício de terror que praticou contra tudo (a língua, a pátria, a família, Deus, a beleza, etc.) do que no exercício de tiro ao alvo, mesmo quando o alvo é ele próprio e as suas circunstâncias biográficas (por exemplo, a atitude perante o envelhecimento e a morte próxima). No entanto, o abandono moderado de uma elevada entoação órfica seguiu também outras vias pelas quais o poeta chegou a poemas de um enorme fulgor. Há neste livro algumas amostras, vejamos esta: “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo,/ mas faltava algures uma linha de silêncio que as ligasse todas,/ e então abri a mão inteira e sobre a mão abri a boca,/ e depois fechei os olhos a toda a volta,/ e depois a terra estremeceu,/ e depois eu estremeci no meio dela, mudo e cego e surdo e imóvel:/ mas soube que não tinha criado os elementos do mundo”. O poema a que pertencem estes versos é uma pequena pérola de auto-reflexão poética. A palavra “mundo” (fundamental, no vocabulário herbertiano) e as duas formas do verbo “estremecer” oferecem matéria de natureza poetológica para uma leitura da sua obra poética. Talvez o “estremecimento”, nas suas imensas ocorrências, seja uma maneira de dizer que o poema é uma acção e essa acção é uma agitação da linguagem. O poema é o lugar da maior agitação e é o que mantém aberto, na sua articulação, o sonho de uma língua que retém e desacelera. Abrir a linguagem, obter a “letra aberta”, é de facto uma acção que não consiste em dobrar a linguagem em direcção a um fim. E é aí que, em cada nome se dá um estremecimento. O poema vem do canto e guarda a memória de ter sido cantado. E quanto ao “mundo”, que reaparece com alguma frequência neste livro, aí entramos numa zona de onde se avista o fundamental da poesia de Herberto Helder. Há uma questão do “mundo” na poesia moderna (sobre a qual, aliás, há importantes estudos), que pode ser inaugurada com uma frase que podemos ler no Hyperion, de Hölderlin. É quando Diotima diz: “Tu queres um mundo. É por isso que tens tudo e não tens nada”. Mas para tratarmos a questão do mundo em Herberto Helder também não podemos ignorar que a sua poesia reivindica uma dimensão arcaica que a faz atravessar o tempo desde a origem. Tal como não podemos esquecer um conceito de Rilke, o “espaço interior do mundo”: em termos muito sumários, trata-se de um mundo interiorizado e um Eu exteriorizado, onde se abolem as fronteiras entre o dentro e o fora.
Nota: no frontispício do livro, podemos ler: “poemas inéditos escolhidos por Olga Lima”. Mas o livro não resultou apenas de um acto de escolha dos poemas. Quem fez a transcrição? De quem são as quatro notas que aparecem no final? E, mais importante ainda: de quem é a decisão de chamar a este livro Letra Aberta (nome retirado de um poema)? Tudo indica que é um título editorial, mas o livro faz passá-lo por título autoral.