Na cabeça de Francisco Louçã
Um dia eu gostaria de conseguir compreender uma cabeça de esquerda como a de Francisco Louçã. Aliás, queria pedir desculpas antecipadas a Francisco Louçã por estar a usar a sua cabeça. Ela está aqui no papel de sinédoque – assim como quem diz Moscovo para falar da Rússia toda –, enquanto cabeça representante de numerosas cabeças de esquerda que pensam mais ou menos o mesmo do que ele. A escolha recaiu na cabeça de Louçã por dois motivos: 1) é a cabeça de esquerda que neste momento tenho mais à mão; 2) resolvi escrever esta crónica após ler o seu texto “Brasil: um golpe de Estado em transmissão directa”.
São José Almeida já assinou aqui no PÚBLICO um excelente artigo sobre o tema (“Corrupção é corrupção. Ponto final. Parágrafo”), alertando para o inconcebível relativismo moral que subitamente tomou conta de boa parte da esquerda portuguesa, que resolveu transformar Lula e Dilma em desamparadas vítimas da tenebrosa justiça brasileira. Escreveu Francisco Louçã: “Assistimos no Brasil a um golpe de Estado em transmissão directa. É assim que se procede no século XXI: em vez de tanques nas ruas é um juiz que derruba um governo.” Embora admitindo que “o PT alimentou a monstruosidade” do Petrolão, Louçã reduz as suspeitas de corrupção a um “ódio de classe contra Lula, torneiro mecânico feito grande do país”. O facto de a justiça brasileira estar a atingir transversalmente todo o sistema político, e não só o PT, parece ser para ele um detalhe sem qualquer importância.
É por isso que tenho um problema com a cabeça de Francisco Louçã: eu não deveria estar em desacordo com ele no combate à corrupção. Francisco Louçã e respectiva cabeça são co-autores de livros como Os Donos de Portugal (2010), Os Donos de Portugal em Angola (2014) ou Os Burgueses (2014), obras de referência na caracterização da classe dominante portuguesa (reparem que até estou a usar linguagem marxista) e das redes de poder clientelar que ela estabelece. Faço notar que eu só sou de direita até nove décimos da escala social – quando se entra no último décimo, poderia perfeitamente ir discursar para a Festa do Avante. Em todas as comissões de inquérito a banqueiros, estive sempre ao lado do Bloco de Esquerda. Soubesse eu usar pompons e ter-me-ia candidatado a cheerleader da claque de Mariana Mortágua na comissão do BES. Houvesse posters seus à venda nos quiosques e teria colado um na porta do meu quarto depois de a ouvir fazer perguntas a Zeinal Bava.
Mas eis que de repente as acusações de corrupção caem em cima de Lula da Silva, o menino bonito do socialismo planetário, e tudo o que antes era sólido se dissolve no ar. Afinal, existe uma corrupção de direita e uma corrupção de esquerda. A corrupção de direita está sempre baseada em factos indesmentíveis e é a coisa mais vergonhosa do mundo. A corrupção de esquerda está sempre baseada em teorias conspirativas e é a coisa mais injusta do mundo. Francisco Louçã e a sua cabeça partiram-me o coração: eu pensava que tínhamos uma plataforma mínima de entendimento e que poderíamos encontrar-nos na rua e concordar sobre Ricardo Salgado, José Sócrates ou Lula da Silva. Afinal, não. Só há plataforma de entendimento à direita. O Ricardo Salgado, esse, é de certeza ladrão. Já Sócrates é um presumível inocente. E Lula da Silva uma infeliz vítima de conspirações. Que chatice, Francisco. Receio bem que tenhamos ficado sem tema de conversa.