A quem te bate numa face, mostra-lhe outro caminho
Não só o insulto não é uma forma de argumentação, como sou insultada pelo que não disse em lado algum.
Segundo a interpretação habitual de uma passagem dos Evangelhos, a quem nos bate numa face deveríamos oferecer a outra. Suspirei de alívio quando, há anos, uma psicanalista que fora aprender grego e hebreu bíblicos, escreveu que a melhor tradução seria algo do género: a quem te bate numa face, mostra-lhe o outro caminho, um caminho diferente da violência e do masoquismo.
Vem isto a propósito da carta aberta que o Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, Manuel Capelas, me dirigiu neste jornal no dia 24 de Março, acerca do texto da minha autoria que o PÚBLICO publicara em 17 do mesmo mês, partindo de uma reportagem e debate sobre morte assistida que a SIC notícias transmitira. Recebi dois e-mails de protesto: da Drª Ana Bernardo e do Presidente da Associação (o texto agora publicado). Respondi aos dois (com conhecimento às mesmas pessoas para quem os e-mails tinham sido enviados) através de alguns pontos breves, dando a “conversa” por terminada, pois não só nunca entendi o insulto como forma de argumentação – as minhas posições, segundo o Presidente, revelariam uma “[...] uma baixeza moral, ética e científica que repugna” -, como, ainda por cima, era insultada por aquilo que nunca dissera.
Como o assunto se tornou público, retomo os pontos que já enviara pessoalmente, acrescentando-lhes outros.
1. Em lado algum do meu texto do PÚBLICO teço considerações negativas sobre a competência dos médicos de Cuidados Paliativos (CP), ao contrário do que me é atribuído.
2. As palavras que cito da Dr.ªAna Bernardo vão entre aspas e são a transcrição do que afirmou no programa da SIC. São palavras certeiras do ponto de vista sociológico, não vejo nem escrevo que haja qualquer mal nelas. Tão-pouco digo que a Dr.ª Ana Bernardo trate melhor uns doentes do que outros, o que nunca me passou pela cabeça. Aliás, o essencial do texto não passa de modo algum pela Drª Ana Bernardo, mas por posições diferentes que as pessoas têm perante a vida e a morte.
3. O tema do meu artigo é claramente de pendor sociológico e desenvolve uma questão que não constitui qualquer novidade: o grau de aceitação dos CP difere consoante o perfil idiossincrático de cada pessoa.
4. Nem vale a pena reafirmar que sou uma defensora dos CP, e que tal posição está claramente expressa no Manifesto e em tudo o que escrevi até hoje sobre o tema da “morte assistida” e do fim-de-vida, em dois livros que, ao todo, somam setecentas páginas, um da Sextante, outro da Almedina. São páginas que julgo serem de qualidade. Não chegam para argumentar uma posição? Para além dos textos que foram publicados neste Jornal? O senhor Presidente leu-os? É que eu já li muito sobre CP, e daí declinar a oferta que me faz de frequentar gratuitamente um curso sobre eles.
5. Simplesmente, para além dos CP, reivindico também, para aqueles que reflectidamente o desejarem, a possibilidade de optarem por uma “morte assistida”.
6. Quanto ao insulto que me dirige o Doutor Capelas, lamento-o pelo menos duas vezes: primeiro, porque o insulto não é uma forma de argumentação; segundo, porque sou insultada pelo que não disse em lado algum.
7. A título pessoal devo dizer que, como doente oncológica, ainda há pouco consultei uma médica de CP que me recebeu optimamente. Fui consultá-la a conselho de um médico de CP que me enviara um email para troca de opiniões, sem insultos.
8. Acerca do termo “morte assistida”. Os defensores da sua despenalização não o usam por quase má-fé, como é insinuado: é que a nossa discussão surge muitos anos depois de ela se ter instalado noutros países, e o termo “assistido” ganhou um significado preciso: o de antecipar a morte (assisted dying, physician-assisted-dying, physician-assisted-suicide, mort assistée), e não apenas “acompanhá-la”.
9. Os fundadores do Movimento não têm comparecido em debates, não por “desespero” quanto a falta de argumentação, como é dito, mas porque estão com problemas graves de saúde. Se alguém quiser ficar com as nossas doenças, agradecemos muito. Em todo o caso, as argumentações são válidas por elas mesmas e não por quem as faz. Além disso, ver as pessoas do Movimento como “generais” e “soldados” é olhar para a cidadania como uma guerra, visão que de modo algum partilho.
10. Sei que há médicos dos CP que lamentam a carta aberta que me foi dirigida, por a acharem “deselegante” e revelar não ter entendido nada do que eu escrevera. Com eles, o debate alcançará um nível superior.
Professora Aposentada da UMinho (laura.laura@mail.telepac.pt)