Esterilização: o aparelho reprodutor feminino não é um "espaço público"

Após quatro anos de tentativas falhadas de obter uma esterilização, Holly Brokwell conseguiu-o. Esta história demonstra que o aparelho reprodutor feminino é ainda um espaço público cujo funcionamento é pautado por pareceres de natureza cultural e, como tal, absolutamente subjectivos e variáveis

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Molly Belle/Unsplash

Há uns dias, deparei-me com uma crónica da jornalista Holly Brokwell acerca da sua vitória na batalha travada com o NHS (National Health Service) durante quatro anos. Conseguiu autorização para ser esterilizada. Após anos de recurso a métodos contraceptivos com múltiplos efeitos secundários negativos e de tentativas falhadas de obter uma esterilização, que segundo a própria, seria uma decisão informada e fruto de muita ponderação acerca das implicações e consequência da (não) procriação, viu finalmente reconhecido este direito.

O que é que esta história, que tem lugar na Europa progressista do século XXI, demonstra? Essencialmente que o aparelho reprodutor feminino é ainda um espaço público cujo funcionamento é pautado por pareceres de natureza cultural e, como tal, absolutamente subjectivos e variáveis. Contudo, estes pareceres, como a própria autora descreve nas crónicas que escreveu a este propósito, podem assumir diversas formas e manifestarem-se sob os mais variados pretextos mas todos eles, na realidade, visam contestar e contrapor uma decisão que envolve a subtracção do indivíduo a algo tão culturalmente enraizado como o acto da procriação.

Um dos principais argumentos — se exceptuarmos aqueles que envolvem preceitos religiosos ou o argumento que envolve os mecanismos básicos de reprodução da cultura e de perpetuação da sociedade — é o da irreversibilidade. Em relação à questão da preocupação da sociedade hegemónica com o grau de irreversibilidade das decisões tomadas pelo indivíduo — este caso da esterilização — para além de ser um problema do principal e único visado (a partir do momento em que ele se torna maior de idade e já teve acesso a uma quantidade de informação que lhe permita tomar uma decisão consciente) é uma falsa questão pois também o acto de ter filhos é irreversível.

Sendo a vida algo de finito quase tudo é irreversível, de alguma forma. Depois de certas decisões, acontecimentos e confrontos com determinadas realidades dificilmente algo volta a ser como antes. São irreversíveis as mudanças que se operam em alguém pelo facto de se ter decidido estudar um determinado tema, por se ter decidido morar num determinado local, por se ter decidido encetar relações com determinadas pessoas. Faz parte da vida assumir a responsabilidade pelas consequências das próprias decisões, sejam elas quais forem. A (não) parentalidade é uma delas. A mudança é contínua, de certo modo é sempre irreversível e opera-se continuamente através do próprio acto de viver.

Aquilo a que a preocupação comunitária com os princípios que cada indivíduo decide definir como seus para orientar uma decisão que deveria ser do foro estritamente íntimo é uma forma de prepotência, paternalismo e uma tentativa de passar atestados de menoridade mental àqueles que querem assumir uma conduta aplicada à procriação diferente daquela estabelecida pelos preceitos da sua cultura. E este cenário é inadmissível. Porquê? Porque desse modo não se pode falar de progressismo nem de respeito pela diferença se aqueles cujo comportamento corresponde, em maior ou menor medida, aos parâmetros da cultura vigente decidem e se acham no direito de aborrecer/oprimir/assediar/moralizar os demais com as suas referências culturais e pessoais logo, absolutamente relativas e circunstanciais.

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