O mundo não perdeu Palmira – mas serão necessários cinco anos para voltar a levantá-la
Primeiras imagens da cidade após a tomada pelo exército sírio mostram que vários monumentos foram surpreendentemente poupados.
Não havia boas notícias de Palmira desde que o Estado Islâmico (EI) tomou a cidade, em Maio de 2015, e fez dela um caso particular da sua ofensiva para controlar a estrada que liga a capital síria, Damasco, à disputada província de Deir-Ezzor. Paragem estratégica a meio do caminho, e não apenas por razões de conveniência militar: entre muitas outras baixas, todas irreparáveis, o EI publicitou, à atenção da comunidade internacional, a destruição de alguns dos mais monumentais vestígios da civilização que ali se levantou há mais de dois mil anos, na encruzilhada entre o império romano e o Oriente, e que foi ponto de paragem obrigatória para as caravanas da Rota da Seda.
Há boas notícias agora que o exército sírio reconquistou a cidade com apoio da aviação russa e foi possível verificar in loco o estado daquelas ruínas que a UNESCO inscreveu em 1980 na lista do Património da Humanidade – mas também há más. Em declarações à AFP, o chefe do Departamento de Antiguidades sírio, Maamoun Abdelkarim, anunciou que, embora as autoridades temessem de facto o pior, “em geral a paisagem [arqueológica] está em bom estado”. Ainda assim, acrescentou mais tarde, “serão necessários cinco anos para restaurar os monumentos destruídos ou danificados” pelo EI – os mais gravemente afectados serão, como já se sabia, o Arco do Triunfo e os templos de Baal-Shamin e de Bel. Deste em particular, notou Abdelkarim ao New York Times, muitas pedras estão intactas: “Vamos tentar reconstruí-lo. Não ficará como dantes.”
As primeiras imagens divulgadas pelas agências internacionais após a tomada de Palmira pelas tropas de Bashar al-Assad confirmam a devastação parcial do sítio arqueológico – e o até aqui indocumentado grau de destruição a que foi submetido o museu da cidade na ausência do seu director, Khalil al-Hariri, forçado a deixar Palmira por razões de segurança. Em contrapartida, também revelam que vários monumentos foram surpreendentemente poupados: o teatro romano, a ágora e a colunata parecem ter sobrevivido a dez meses de ocupação e hostilidade, embora o exército sírio admita que possa ainda haver explosivos por detonar na área.
Serão precisos mais alguns dias para que a equipa de peritos do Departamento de Antiguidades possa conduzir uma primeira avaliação conclusiva dos danos, que se estendem a várias torres funerárias da necrópole de Palmira situadas a Oeste das antigas muralhas da cidade. A UNESCO, através da sua directora-geral, Irina Bokova, já tinha saudado a ofensiva para libertar a "cidade-mártir" e anunciou agora que os seus peritos estão prontos para integrar “uma missão de emergência” – em resposta, o presidente russo Vladimir Putin, disponibilizou “o apoio imediato e as competências do seu país […] assim que as condições de segurança o permitam”, avança um comunicado da organização. O porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, adiantou entretanto que o “contingente russo participará nas operações de desminagem” do complexo arqueológico.
A reconstrução das ruínas de Palmira é a “batalha cultural” que se segue – para Maamoun Abdelkarim, que este domingo escreveu no Guardian que voltar a levantar o que resta daquela cidade mítica da Antiguidade enviará a mensagem certa ao terrorismo internacional (“Assim diremos aos terroristas que, façam o que fizerem, não podem apagar a nossa história, e que não ficaremos de braços cruzados a chorar sobre as ruínas”), mas também para a UNESCO, que pretende organizar no fim de Abril uma conferência de peritos para discutir aprofundadamente a estratégia a adoptar na Síria.
O responsável sírio acusa o EI de ter “obliterado” em Palmira um passado histórico e cultural que não é apenas nacional, ao longo de dez meses em que “o roubo e a pilhagem se tornaram habituais”: “O património sírio é património de toda a humanidade. Não pode ser dividido entre os que apoiam o governo e os que apoiam a oposição (…). Síria, Iémen, Líbia, Iraque, Afeganistão, Mali – todos sofreram a destruição do seu património às mãos de uma ideologia de extremismo e terror.”
Agora que pode regressar a Palmira, Khalil al-Hariri, o director do museu cujas salas desfeitas começam a aparecer na imprensa internacional, enfrenta as “memórias dolorosas” da morte de familiares e amigos – incluindo Khaled al-Asaad, o arqueólogo de 81 anos, já reformado, que durante mais de quatro décadas supervisionou as ruínas e acabou decapitado pelo EI na praça em frente ao museu, onde o seu corpo mutilado foi atado a um poste, como qualquer vulgar cartaz de propaganda política.
Tal como o EI, que viu em Palmira um “cenário perfeito” – e muito gráfico – para “intimidar o mundo”, como dizia há meses ao PÚBLICO o arqueólogo sírio Amr Al Azm, professor de História do Médio Oriente da Shawnee State University, também o regime sírio e o seu principal aliado no terreno, a Rússia, parecem interessados em capitalizar o potencial de simpatia que a reconquista de Palmira pode gerar na opinião pública ocidental (facto paralelo, a directora-geral da UNESCO, Irina Bokova, é tida como a favorita de Putin ao lugar de secretário-geral das Nações Unidas). As declarações de Bashar al-Assad à televisão estatal, citadas pela Reuters, sugerem que o regime não será propriamente indiferente a essa possibilidade de diplomacia cultural que agora se abre: “Palmira foi demolida mais do que uma vez ao longo dos séculos… e iremos restaurá-la uma vez mais para que possa ser um tesouro do património cultural para todo o mundo.”