O efeito Marcelo
1. Vivemos todos a última semana com os olhos postos nos atentados terroristas em Bruxelas e nas gigantescas operações policiais levadas a cabo em França e na Bélgica para impedir outros, já em preparação “avançada”. A crise brasileira, que mesmo os piores cenários não conseguiam prever, mobilizou igualmente a nossa atenção. Finalmente, num mundo em que só há más notícias, a visita histórica de Obama a Havana e a verdadeira festa que ela representou para os cubanos foi uma espécie de bálsamo. Não demos, talvez por isso, a atenção devida a dois acontecimentos nacionais, ambos protagonizados por Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro, ouvimos, com alguma surpresa, as declarações do Presidente na cerimónia de cumprimentos do Governo. Marcelo não deixou quase nada por dizer sobre o sistema financeiro, com uma novidade a que nos podemos habituar desde já: em vez de deixar recados nas entrelinhas, para serem descodificados segundo as conveniências de cada um, deixou palavras claras e compreensíveis sobre um dos temas que mais nos preocupam neste momento – as enormes fragilidades da banca portuguesa. O Expresso tinha noticiado uma reunião do primeiro-ministro com Isabel dos Santos relacionada com a situação do BPI e do BCP. Passos Coelho tinha desancado António Costa por se imiscuir em assuntos privados com os quais não tinha nada que ver. Marcelo resolveu entrar no debate, clarificando o que pensa (o mesmo que muita gente, incluindo no PSD). Não se trata da “partidarização da vida empresarial”, trata-se do “cumprimento da Constituição, que subordina o poder económico ao poder político e que determina que o poder político salvaguarde um conjunto de princípios fundamentais do Estado de direito democrático” A intervenção dos órgãos de soberania justifica-se, disse ele, em situações em que esteja em causa estabilidade do sistema financeiro, o “interesse público” e o envolvimento de dinheiros públicos, como é o caso. As suas palavras foram direitinhas para Pedro Passos Coelho, impedindo qualquer tentativa de não ligar uma coisa à outra, graças à clareza com que foram pronunciadas.
Há aqui um lado de ficção, porque ninguém acredita que Passos não soubesse de nada. Mas há também uma profunda crença ideológica, cujo problema maior é que está a começar a ficar em desuso, até nos países mais liberais do mundo, como os EUA e o Reino Unido. Alan Greenspan, que presidiu à Reserva Federal antes da crise financeira, fez a sua mea culpa ao Congresso americano, confessando que acreditara em que os mercados funcionavam de forma racional, movidos pelo seu próprio interesse, e que nunca esperou que atingissem um tal estado de dessintonia da realidade económica que esteve por trás da crise hipotecária em 2007 e, depois, da crise financeira que afectou o mundo inteiro. Já sabemos hoje que os mercados financeiros também podem fazer haraquiri. Foi a mesma ideia de que o Estado americano não tinha de se envolver com as grandes empresas financeiras que transformou a crise do subprime na crise financeira global. Quando se tornou claro que o velho gigante do investimento Lehman Brothers estava perto da falência, Bush decretou que esse não era um problema seu. Bastaram 15 dias para descobrir qual foi a consequência dessa decisão. Também sabemos outras coisas, como, por exemplo, que o Governo de Merkel injectou quase tanto dinheiro na banca alemã como o Governo britânico para a pôr a salvo e que não deixou que os bancos dos Länder (estados regionais) ficassem sob o mecanismo de supervisão europeu, dada a sua forte ligação às economias de cada região. Passos apresentou-se contra a promiscuidade entre a banca (no caso, o BES) e a política. Até aqui tudo certo. Mas essa era apenas uma parte do problema. A outra era garantir a solidez do sistema bancário nacional, em vez de esconder as suas enormes fraquezas, como se não fosse nada com ele. Do mesmo modo, a velha ideia segundo a qual qualquer intervenção estratégica do Estado sobre a economia é um pecado mortal (porque afecta a liberdade dos mercados ou porque, na versão de alguns, é substituir a competência dos mercados pela incompetência pública) é cada vez mais uma esquisitice nacional que nem a mais liberal Inglaterra pratica. Sabemos que a concorrência ainda não deixou de ser a melhor forma de melhorar a performance das empresas. Mas é preciso deitar um olho a Bruxelas para ver se toda a gente é tratada da mesma maneira e é preciso olhar para os mercados a ver se não voltam a praticar haraquiri.
2. A segunda “ousadia” de Marcelo foi o convite a Mario Draghi para vir a Lisboa no dia 7 de Abril apresentar a situação económica e financeira da Europa ao Conselho de Estado, incluindo a questão das reformas destinadas a aumentar a competitividade da economia. Entretanto, o Governo aproveitará a sua presença para discutir directamente algumas soluções para a banca às quais o BCE se tem oposto. Foi uma boa ideia que, pensando um pouco, é afinal bastante lógica. Se temos uma só moeda e uma só política monetária definida pelo BCE, o melhor que há a fazer é ouvir alguém de cuja acção depende muito do que se passa aqui. O presidente do BCE não participa na discussão posterior entre os conselheiros de Estado, mas pode clarificar alguns limites sobre a margem de decisão de um país que quer continuar a fazer parte do euro, que todos à volta da mesa vão ouvir, de Domingos Abrantes a Francisco Louça, incluindo o próprio primeiro-ministro. A questão da banca e o convite a Draghi mostram que Marcelo vai ser um Presidente muito activo, um papel que a fragilidade da coligação que apoia o Governo e a nova configuração da direita, com a ruptura entre CDS e PSD, lhe permitem desempenhar. Não vai ser sempre um sustentáculo da estabilidade governativa, quando achar que o Governo está a ir longe de mais ou longe de menos. A bofetada sem luva branca que deu a Passos mostra que a sua ideia de “consenso” pode não incluir um PSD ideologicamente radicalizado.
3. O Governo, entretanto, aprendeu alguma coisa com a sua experiência de negociação do Orçamento com Bruxelas. Foi quase apanhado desprevenido com a “armadilha” do procedimento de desequilíbrio macroeconómico excessivo, que conseguiu desarmadilhar a tempo. O episódio do comissário Pierre Moscovici foi mais um aviso da forma como as coisas se passam em Bruxelas, entre uma eurocracia (pouco) iluminada e o fundamentalismo de Schaeuble e dos seus amigos do Norte, com bastante desconsideração pelos países periféricos. Costa decidiu que os próximos documentos fundamentais para o semestre europeu, o Programa Nacional de Reformas e o Plano de Estabilidade e Crescimento, seriam desde o início debatidos com Bruxelas para evitar novas surpresas desagradáveis. A vinda de Draghi também pode ajudar alguma coisa.
Enfim, hoje a música é outra e, por enquanto, bastante melhor. Falar claro é coisa que Marcelo consegue fazer como poucos: é a sua arma política mais eficaz. Mas falar claro nestes dias de crise profunda, em que está em causa o nosso destino e o destino da Europa, pode ser uma grande vantagem para um debate nacional mais profícuo, esclarecedor e cada vez mais urgente.