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“Estes extraterrestres não levam o mundo a unir-se contra eles”

Ouvimos José Gil, Irene Pimentel, Maria Belo, Luís Baptista e Luísa Lima sobre o impacto que o medo do terrorismo vai ter (e já tem) na vida das pessoas.

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O medo “fecha-nos no nosso grupo, nos nossos valores”, diz Luísa Lima KENZO TRIBOUILLARD/AFP
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O filósofo José Gil Miguel Manso

E se o terrorismo, como o que vimos na terça-feira em Bruxelas, passar a integrar o nosso quotidiano? O que pode fazer o medo aos nossos dias? Viveremos cada vez mais “exasperados” e “acossados”, expressões usadas pelo filósofo José Gil. Seremos mais “intolerantes”, admite a historiadora Irene Pimentel. Assistiremos a um esvaziamento dos espaços públicos, sintoma dramático de fechamento das sociedades, como sugere o sociólogo Luís Baptista. No fim, “somos imensamente adaptáveis”, diz Luísa Lima, professora de psicologia social. Para o bem e para o mal.

No rescaldo dos atentados no coração da Europa, há muito de inquietante nas respostas às perguntas colocadas pelo PÚBLICO. Começámos pelo filósofo José Gil. “Vivemos um dilema entre as questões da segurança e as questões da liberdade e esse dilema vai continuar porque a questão não vai ser resolvida. Este é um dilema mundial” num momento em que se vive “uma guerra esquisita”. E porquê esquisita?

“Porque não sabemos ainda o que é, para nós, o Estado Islâmico”, responde o autor de uma vasta obra que inclui o célebre Portugal, Hoje — O Medo de Existir. “O Estado Islâmico é uma entidade que está fora, que aparece com um comportamento fora da nossa ética, de todo o nosso pensamento humano. São como extraterrestres. Não são extraterrestres que levem o mundo a unir-se contra eles, como todos os líderes mundiais dizem que querem, nos discursos que fazem, mas não é possível. Pelo contrário, há uma desunião cada vez maior. Há uma desunião entre as políticas dos diferentes Estados da Europa, entre a Europa e a Rússia, etc, etc, etc... Estes extraterrestres provocam ainda mais dissensão no mundo ocidental.” No fundo, “porque estamos nós próprios em dissensão connosco”.

Sentido-se como “soldados sem armas contra os quais eles [do Estado Islâmico] combatem” as pessoas ficarão “cada vez mais exasperadas”. A “agudização da extrema direita na Europa” é apenas uma das faces visíveis disso mesmo.

Securitarismo e xenofobia
“Vai haver uma tendência para o securitarismo, não para a segurança, que essa é, evidentemente, necessária”, responde, por seu lado, a historiadora Irene Pimentel. “Haver mais segurança nos aeroportos, haver mais polícias armados em certos espaços não é algo que ponha em causa a democracia. Claro que tem de haver mais segurança, o problema não é esse, temos de nos defender. Mas temos de nos defender ampliando a democracia.”

Não é o que está a acontecer, acredita. “Em França, por exemplo, já houve mudanças na Constituição, preocupantes, porque há actos que não servem para nada, que põem em causa o nosso Estado de direito e o que foi adquirido ao longo de anos — como a possibilidade de tirar a nacionalidade a hipotéticos suspeitos de terrorismo. E isto passa-se num continente onde já houve totalitarismos. O nazismo, por exemplo, também usou essa arma: retirar a nacionalidade a todos os que considerava suspeitos ou que não estavam integrados na chamada comunidade nacional, a começar pelos judeus”.

A xenofobia tenderá a crescer, prossegue ainda. “Há já uma tendência muito grande para misturar a presença de refugiados no continente europeu com o perigo do terrorismo e de infiltrações de terroristas”, coisa que, aliás, diz, também aconteceu na II Guerra Mundial: “A Europa fechou as portas aos refugiados, na altura judeus e adversários políticos de Hitler, porque dizia que tinha medo que pelo meio viessem nazis e espiões que se iam infiltrar. Os EUA fizeram a mesma coisa.”

Falta de comunicação
A verdade é que a ameaça, a incerteza, é algo de profundamente desestabilizador. “Não gostamos da incerteza, evitamo-la e somos imensamente criativos para lidar com ela”, explica Luísa Lima, professora catedrática no ISCTE-Instituto Universitário. “Mudamos algumas coisas na vida, modificamos alguns hábitos. Por exemplo, nas escolhas dos destinos de viagem, evitamos o que não conhecemos, vamos para sítios mais familiares em vez de experimentar coisas novas.”

E se não há mesmo possibilidade de escolha? “Se não têm escolha, as pessoas arranjam forma de se iludir”, do género “a nossa polícia é melhor do que a de outros países, estamos mais seguros... o sítio onde vivemos é melhor do que outros...”.

“Por outro lado, se nos sentimos ameaçados, fechamo-nos no nosso grupo, nos nossos valores” e “tendemos a afastar-nos do outro”, a discriminar até, diz Luísa Lima. Sendo que “neste caso há um ‘outro’ muito claro: os muçulmanos”.

Maria Belo, psicanalista, recorda os tempos em que foi deputada no Parlamento Europeu (PS) para ilustrar como uma comunicação difícil (e em países como a França é difícil a comunicação entre muçulmanos e não muçulmanos) se torna uma impossibilidade de um momento para o outro. “Tinha um grupo de jovens, judeus, palestinianos e franceses, que juntava todos os meses para discutirmos. Começámos antes da segunda Intifada. Mas o diálogo que tinha sido possível no início, tornou-se quase impossível quando começou a segunda Intifada” a partir de 2000.

Prossegue: “É evidente que a violência incomoda toda a gente e cada um reage procurando identificar-se com um lado.”

Desconfiança e liberdade
Com quem vão identificar-se muitos dos muçulmanos que vivem em França e não se sentem integrados? Mesmo que não sejam bombistas, diz Maria Belo, há o risco de se identificarem com os que cometem a violência. “Se não se identificarem com eles, não têm com quem se identificar, ninguém lhes propõe um mundo de identificação. Falamos muito de solidariedade, mas no nosso dia-a-dia em geral, e em França, não vivemos isso, não é essa a nossa preocupação fundamental, portanto não é o que transmitimos como uma imagem passível de identificação.”

Como já se disse, há muito de inquietante nas respostas às perguntas colocadas pelo PÚBLICO. E Luís Baptista, sociólogo, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, não destoa. Centra-se naquele que é um dos seus objectos de estudo: o território, mais concretamente os espaços públicos. Começa por dizer o seguinte: “O facto de, no planeamento das cidades, se terem criados lugares próprios de convivência entre diferentes grupos é qualquer coisa que emerge como um elemento estruturante das cidades modernas. Aparece logo no século XIX, com a ideia de passeio público”, um “princípio fundamental de democracia” integrado nas cidades.

O que o medo potencialmente faz aos espaços públicos é conhecido: as pessoas sentem-se inseguras, vão-se embora, esses espaços eclipsam-se. “E quando as sociedades perdem os seus espaços de encontro, os espaços de partilha, tendem a ser sociedades mais fechadas, tendencialmente menos abertas à diferença; a desconfiança tende a ser maior, o que é absolutamente dramático face aos pressupostos que temos de convívio, de direito à diferença, de comunhão de grupos sociais diferentes.”

Mas como dizia Luísa Lima, que tem estudado a questão da percepção que temos dos riscos, as pessoas “são imensamente adaptáveis” e neste processo de adaptação até pode emergir algo de positivo — algo que acontece, por vezes, quando se sobrevive a uma doença muito grave. “Nestes momentos em que pensamos ‘isto podia ter-me acontecido a mim, porque já passei por aquele aeroporto, já estive naquela situação daquelas pessoas que agora são vítimas...’, damos mais valor às coisas que achamos importantes na nossa vida, vivemos mais o presente, pensamos mais naquela pessoa a quem não agradecemos algo importante.”

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