É outra vez tempo de descobrir Dina, cantora de toda a gana
Afastada dos palcos devido a problemas de saúde, Dina é homenageada por um conjunto de músicos capitaneados por Gonçalo Tocha, esta terça-feira em Lisboa, quinta-feira no Porto. O espectáculo de encerramento da carreira da cantora volta a apresentar Dinamite, o disco que ficou por ouvir.
Gonçalo Tocha descobriu Dina entalada entre Julio Iglesias e Tintarella di Luna numa colectânea das Selecções do Reader’s Digest. E escrevemos que descobriu porque aquela Dina rockeira não era a cantora que qualquer nascido na década de 1970 conhece de cor dos tempos áureos do Festival da Canção. Tocha, um assumido apaixonado e garimpeiro de discos de cantores desconhecidos, entusiasta de um lado B da história da música popular, ficou fascinado com a canção Pássaro doido e com uma faceta de Dina que remetia, afinal, para essa história alternativa que não vingou.
O entusiasmo foi tanto que o seu duo de música popular Tochapestana procurou Dina para lhe pedir a bênção para a versão de Pássaro doido que queriam incluir no álbum Música Moderna. “Nunca tinha imaginado que iria conhecer a Dina um dia”, confessa Tocha numa conversa a três com o PÚBLICO e a cantora num café em Alfornelos, perto da casa da voz de Amor de água fresca. “Liguei-lhe para falarmos com ela e tinha a esperança de que se o nosso encontro corresse bem podíamos ter a sorte de ela participar na canção.”
Dina (Ondina Veloso de seu nome) não estava propriamente a contar com cantorias do seu lado, achava-se antes “superencantada por malta desta idade conhecer o Pássaro doido e querer regravá-lo”. “Fiquei inchadinha, orgulhosa e gostei logo deles pela forma como me abordaram.” Mas perante a intenção dos Tochapestana em levá-la para estúdio, teve de alertar Tocha para as suas limitações físicas, decorrentes de uma fibrose pulmonar que a afastou dos palcos. “É tramado até para quem fala, quanto mais para quem canta”, ri-se Dina. Só que o à-vontade com o duo foi tão instantâneo que puxou da sua melhor voz de mulher do rock e gravou o tema à primeira, surpreendendo-se até com a sua prestação. “Fiquei muito grata”, lembra a cantora. “Durante três dias respirei tão bem...”
Seria Dina, mais tarde, a passar a Gonçalo Tocha o álbum Dinamite – sucessor do single Pássaro doido/ Amar sem aviso. Mais uma vez, Tocha ouvia ali uma grandiosidade apenas proporcional à injustiça do seu apagado lugar no panteão da música portuguesa e, tomando contacto com a obra da cantora para lá das canções firmadas no imaginário popular, o músico e realizador foi percebendo que Dina se retirara dos palcos sem um merecido momento de celebração e de homenagem. Sem poder contar com a voz em palco da grande protagonista, Tocha juntou uma chusma de cantores – Ana Bacalhau (Deolinda), Márcia, Samuel Úria, B Fachada, Alex d’Alva, Da Chick, Catarina Salinas (Best Youth), Mitó (A Naifa) e os próprios Tochapestana – nos concertos que esta terça-feira em Lisboa (Teatro São Luiz) e quinta-feira no Porto (Rivoli) marcam o encerramento da carreira de Dina.
Não por acaso, o espectáculo intitula-se Dinamite. O álbum homónimo, lançado em 1982, tinha por missão apresentar Dina para além da “miúda de calças de ganga, colete e guitarra”, como a própria se descreve, a que o país se rendera dois anos antes ao concorrer ao festival com Guardado em mim. “Dinamite seria a minha afirmação como cantora e compositora”, lembra Dina. “Mas foi mesmo uma coisa dolorosa. Não queria mais festivais, queria dedicar-me ao álbum e, de repente, sem ser tida nem achada, vejo três canções submetidas ao Festival da Canção, apuraram duas e mataram o álbum. Não se podia misturar as coisas e o meu primeiro álbum não podia passar por ali.” Dinamite ficaria reduzido, aos ouvidos do público, ao Gosto do teu gosto, que perderia o festival para o duelo entre as (vencedoras) Doce, com Bem bom, e Cândida Branca Flor, com Trocas e baldrocas.
“Gosto do teu gosto”, diz Dina, “era uma fruta fresca, uma canção muito leve” que tinha composto na Bulgária e que só por insistência de António Pinho ganhou uma letra, uma vez que a autora a imaginava como instrumental. “Ainda por cima é uma canção gira, mas cansativa como tudo”, diz. “Só que não revela o disco.” Ao invés de chamar a atenção para os diferentes registos que Dinamite explorava e que pretendia lançar uma nova luz, mais abrangente, sobre a natureza de Dina enquanto compositora e intérprete, a canção a que as rádios naturalmente deitaram a mão limitava-se a confirmá-la como a cantora dos festivais, votando o resto do álbum ao esquecimento e deixando Dina profundamente magoada com todo o processo. “E é pena”, comenta Tocha. “Acho que se o álbum tivesse sido ouvido na altura, tinha sido um marco da época, porque era uma mulher compositora a fazer tudo aquilo, do rock muito bom ao funk. É um álbum muito poderoso, com atitude.”
Há, por isso, neste espectáculo, uma espécie de ajuste de contas com o passado. Ou, melhor dizendo, uma nova apresentação de Dina ao público tal como deveria ter acontecido com o lançamento original de Dinamite. Sem travo passadista, mas uma nova oportunidade de Dina se voltar a libertar e mostrar “outras coisas em que se via que era uma cantora com uma atitude bem mais solta e marada da cabeça”.
A gana lá dentro
A gravação em 2014 com os Tochapestana “veio agitar emocionalmente coisas que já estavam de lado”. Recordações que Dina guardara a um canto, longe da vista, depois que o diagnóstico de fibrose pulmonar há nove anos – coincidindo temporalmente com a morte de uma irmã – a aconselhara a recato. Foi para não agravar o seu estado de saúde, precisamente, que em 2012 “arrumou as chuteiras”. Embora ainda encontre diariamente razões de sobra para compor novas canções, e sonhe ainda com a edição de um álbum inédito que recuperaria temas de 2002 e “algumas canções mais recentes muito bonitas” que daria a cantar a outras vozes, a música carrega tanta felicidade quanto frustração na sua vida.
Dina não apenas sabe que a sua carreira poderia ter sido outra, como as actuais limitações físicas a obrigam a desabafar a falta de sentido na sua condição – “que coisa tão má de se fazer a uma pessoa que gosta de cantar”, diz, sem verbalizar o destinatário. Pensa na longevidade de palco de Simone de Oliveira e pergunta-se porque não lhe coube a mesma sorte. Em momentos mais sensíveis, como lhe aconteceu recentemente numa viagem de carro em que o rádio desatou a debitar uma canção de LeAnn Rimes, não conseguiu conter-se. “Era uma canção em que ela puxa pela voz e vai lá acima, e aquilo desencadeou-me um ataque de choro, porque eu ia lá acima também”, conta. “E agora nem lá abaixo”, acrescenta com um humor que, assegura, a tem mantido longe de depressões. “É só esta grande chatice de não poder cantar, não poder exercer a minha profissão. E fica-se triste.”
Para se proteger, Dina adoptou uma dieta composta sobretudo por música instrumental: música clássica – “Não os Mozarts, que esses são obrigatórios e a gente conhece”, esclarece – e jazz interpretado por gente como Keith Jarrett ou Chet Baker, permitindo-se também dar ouvidos a Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Num outro quadrante, de resto, foram as sonoridades norte-americanas e inglesas a cativá-la. Quando começou a cantar, nem tinha um especial gosto pela música portuguesa; era a música de Janis Joplin, Carole King, Creedence Clearwater Revival, Carly Simon, Eric Clapton, Elton John, Genesis ou “o álbum dos Pink Floyd das vaquinhas” que a faziam querer seguir-lhes as pisadas. Mesmo não percebendo “patavina do que diziam”, a atitude, a voz do cantor e a forma como se projectava na canção funcionavam como sedução.
Não espanta, assim, que Gonçalo Tocha oiça também na forma como aborda as canções algo de singular. E diz-lhe, olhos nos olhos: “O ataque que tu tens na frase, a forma como te atiras à letra é uma coisa rara nos dias que correm, em que há uma tendência para suavizar tudo para ficar agradável. Tu tens o agradável mas com toda a gana lá dentro.”
Na televisão
Tocha, o principal impulsionador deste espectáculo que leva Dina a fechar a carreira na mesma sala onde começou (o Festival da Canção realizava-se no São Luiz), identifica-a como a primeira cantora-compositora no feminino a abraçar a canção pop em Portugal. Para a sua geração, Dina era uma figura de constante presença televisiva. “Nessa altura [toda a década de 80, na verdade], aparecia muitas vezes na televisão, até já andava enjoada de mim mesma”, comenta a própria. Mas o certo é que esse período fez de Dina alguém de uma popularidade tão extraordinária que parecia íntima de qualquer lar português. “As primeiras memórias que tenho da Dina andam algures pelo final dos anos 80, início dos anos 90, com as inescapáveis Amor de água fresca e Há sempre música entre nós”, diz ao PÚBLICO Ana Bacalhau. “Ficou a ideia de uma cantora de canções orelhudas, dona de uma voz muito bonita e segura. Só mais tarde pude conhecer melhor o seu reportório e perceber a importância e diversidade do seu trabalho para a música portuguesa.”
E as canções orelhudas sempre foram, de facto, o forte de Dina. “As minhas músicas nunca são muito difíceis”, reconhece, lembrando que foi Jorge Palma a gravar “em três tempos” o piano de Guardado em mim. “Mas a simplicidade não quer dizer que seja banal.” A absoluta consciência dessa capacidade de atalhar no sentido do gosto popular através da melodia ficaria provada no seu regresso ao Festival da Canção em 1992, depois de um longo interregno discográfico – depois de Dinamite, Aqui e Agora, foi lançado apenas em 1991, na altura em que iniciou as colaborações com Rosa Lobato de Faria e João Falcato; por piada, classifica os álbuns como “bastante espaçados e passados”.
Após um lançamento pouco visível de Aqui e Agora pela UPAV (União Portuguesa de Artistas de Variedades), em que por “necessidade de afirmação se lançaram sete discos” de vários dos associados, entre José Mário Branco, Rodrigo ou Carlos do Carmo, a rádio, ainda assim, agarrou-se com unhas e dentes a Acordei o vento. Mas sentindo novamente que a atenção lhe escapava, Dina resolveu agitar as águas e virou-se para o terreno que conhecia melhor. Amor de água fresca, tema com que concorreu ao Festival da Canção, foi feita com o propósito claro de vencer. Se tinha a certeza de que assim seria depois de juntar acordes e melodia, mais certa ficou quando recebeu de Rosa Lobato de Faria o “cocktail de frutas” na forma da letra. Não falhou.
A partir daí, depois de uma primeira experiência em Vila Faia, Dina passa a compor sobretudo para bandas sonoras de telenovelas (Telhados de Vidro, Filha do Mar, Sonhos Traídos), como que reforçando a ideia de que a sua música encontra sempre um caminho até à televisão. Mas porque Dina revela um especial gozo e facilidade em responder a encomendas, quer para telenovelas quer para partidos políticos – a convite de Manuel Monteiro compôs para o CDS e para a Nova Democracia. Mas nestas duas datas, terça e quinta-feira, a intenção é a de que, se Dinamite não apresentou Dina na altura devida, possa agora ser integrado no cancioneiro popular pela mão de uma outra geração. “Não é voltar atrás”, frisa Tocha, “é dar vários passos à frente”.
NOTA: Onde estava "ao vencer o festival com Guardado em mim", passou a estar "ao concorrer ao festival com Guardado em mim". Nesse ano, 1980, ficou em 8.º lugar, vindo a vencer o Festival RTP da Canção mais tarde, em 1992, com Amor de Água Fresca.