Brasil, virá que eu vi

Essa gente pode ser corrupta, mas o presente está tão minado que será preciso repetir o óbvio: em democracia, toda a gente tem de poder ser investigada.

1. Estou no meio da Europa com a cabeça no Brasil, é sexta-feira à noite aqui, grande parte dos meus amigos cariocas estarão na Praça XV, grande parte dos meus amigos paulistas estarão na Avenida, mas nenhum dos que saiu à rua é petralha do poder, tal como nenhum dos que ficou em casa é coxinha do golpe, ou um não-estou-nem-aí, ou isto-só-à-bomba. Todos em angústia, não querem uma guerra civil e querem mil coisas diferentes dentro da mesma: democracia. Nisso, acredito, estão com grande parte do Brasil, apesar dos sabotadores e dos candidatos a salvadores, com seu coro colonial: se um juiz vira rei, deixa de ser juiz, vai nu. Não acredito em Dom Sebastião, acredito no Brasil.

2. Então, no meio de toda a gritaria dos dois lados do Atlântico, a primeira coisa que leio ao abrir o computador é VAMOS DE MÃOS DADAS, a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade:

estou preso à vida e olho meus companheiros

estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças

entre eles, considero a enorme realidade

o presente é tão grande, não nos afastemos

não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas 

O poema não começa nem acaba aqui, mas as palavras para agora parecem-me estas, contrariando a gritaria, o maniqueísmo e aquela onda de triunfalismo classista, do género, eis o resultado de entregar o governo a essa gente. O que tanto se aplica aos herdeiros do Brasil colonial como aos herdeiros do Portugal colonizador. Há um Portugal que ainda acha que o Brasil lhe deve a vida. É o mesmo Portugal que explorou açúcar, ouro, diamantes, café, índios, escravos, e por isso não morreu. Sempre que tropeço nesse Portugal amo mais o Brasil.

3. Essa gente pode ser corrupta, em vários casos comprovadamente foi, em todos deve ser investigada, sem excepção para presidentes, ex-presidentes, ministros. É o óbvio da democracia, mas o presente está tão minado que será preciso repetir o óbvio: em democracia, toda a gente tem de poder ser investigada. Isso inclui a Câmara de Deputados, começando por quem a ela ainda preside, o ultraconservador Eduardo Cunha, sobre quem pendem acusações de corrupção muito mais graves do que as suspeitas que existem sobre Lula. E implica que o judiciário não apareça como o justiceiro que vai derrubar o executivo, entregando escutas à imprensa num momento de emergência nacional, como quem lança petróleo no fogo.

4. Professor de filosofia na USP, Vladimir Safatle escreveu na sua mais recente crónica para a “Folha de S. Paulo”: “Não quero viver em um país que permite a um juiz se sentir autorizado a desrespeitar os direitos elementares de seus cidadãos por ter sido incitado por um circo midiático composto de revistas e jornais que apoiaram, até o fim, ditaduras, e por canais de televisão que pagaram salários fictícios para ex-amantes de presidentes da República a fim de protegê-los de escândalos. O Ministério Público ganhou independência em relação ao poder executivo e legislativo, mas parece que ganhou também uma dependência viciosa em relação aos humores peculiares e à moralidade seletiva de setores hegemônicos da imprensa. Passam-se os dias e fica cada dia mais claro que a comoção criada pela Lava Jato tem como alvo único o governo federal. Por isso, é muito provável que, derrubado o governo e posto Lula na cadeia, a Lava Jato sumirá paulatinamente do noticiário, a imprensa será só sorrisos para os dias vindouros, o dólar cairá, a bolsa subirá e voltarão ao comando os mesmos corruptos de sempre, já que eles foram poupados de maneira sistemática durante toda a fase quente da operação. O que poderia ter sido a exposição de como a democracia brasileira só funcionou até agora sob corrupção, precisando ser radicalmente mudada, terá sido apenas uma farsa grotesca.”

5. Cronistas como Safatle são a excepção num circo mediático distorcido por uma rede de interesses também eles herdeiros de um Brasil oligárquico e apoiante da ditadura. Entre os jornais-jornais e os telejornais, a distorção é muitas vezes revoltante. Entretanto, os brasileiros ainda não superaram mecanismos opressivos de há 400 anos, e há pouco mais de 20 anos viviam em ditadura. A angústia de Março de 2016 tem a ver com o medo de que tudo isso volte em força, um novo golpe como em 1964, que faça retroceder os avanços para tantos milhões de pessoas. Nostálgicos da ditadura civil-militar estiveram nas ruas este mês, participando em manifestações pelo impeachment de Dilma que clamaram ser maiores do que as de 2013. De certa forma, na origem, a explosão eufórica de 2013 foi o contrário da angústia actual, mas de certa forma, no desfecho, prenunciou o que aí vinha: várias trincheiras.

6. Talvez o Brasil tenha sido a derradeira peça do dominó do “progresso”, a última mutação do capitalismo, a sua conta final, que é uma conta lulista. O Brasil a que cheguei, em 2010, na transição Lula-Dilma, era certamente um país capitalista, a apontar ao céu. E, para quem se veio a tornar cada vez mais crítico da governação PT, essa corrupção ideológica, ou desideologização, com consequências catastróficas no ambiente e no mundo indígena, tornou difícil sair às ruas esta sexta-feira porque a defesa da democracia, anti-golpe, podia ser confundida com a defesa de traidores.

7. À esquerda do PT, o deputado carioca Marcelo Freixo gravou um vídeo para tentar unir quem defende a democracia, contrariando o fla-flu que parece dividir o país entre petralhas e coxinhas. Disse Freixo: não defender o impeachment de Dilma não é defender a corrupção; a rua é uma conquista mas a justiça não se pode comportar como a rua; ao tornar-se instrumento de uma política, a justiça gera um sentimento de golpe. O problema, em suma, não será que Dilma e Lula sejam investigados e sim que já estejam a ser linchados.

8. Mas o Brasil de 2016 tem periferias mais preparadas para a luta do que nunca. Se o lulismo virou capitalista, não deixou de criar uma geração activista, feminista, ambientalista, indigenista, anti-homofóbica, anti-racista. A cientista política e poeta Viviane de Salles, que faz parte dessa geração na Cidade de Deus, citava uma frase hoje: Não confunda briga com luta, briga tem hora para acabar, luta é para uma vida inteira. Esta geração não apenas trabalha na periferia para a periferia, como leva elites para a periferia e a periferia para o centro. Não sei, quem sabe, o que será o pós-apocalipse capitalista, se-quando aí chegarmos, mas este Brasil já é parte da história. Índio, caboclo, cafuso, crioulo, vem vindo que eu vi.

 

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