Lucescu, o “brasileiro” que veio do frio
O carismático treinador do Shakhtar Donetsk tem um passado como jogador que foi sempre limitado pelo regime. Mas já então se anunciava uma carreira brilhante.
Há qualquer coisa no futebol brasileiro a que Mircea Lucescu tem dificuldade em resistir. Talvez tenha sido culpa daquela digressão da selecção da Roménia em 1970, do convite do Fluminense que não foi autorizado a aceitar ou da troca de camisola com Pelé em pleno Mundial do México. “Quanto mais o conheço, mais me espanta o facto de não ter nascido no Brasil”, confessou um dia Luiz Adriano, uma das muitas pérolas polidas por um dos mais emblemáticos treinadores da actualidade.
Foi no lado de cá do Atlântico, na realidade, que Mircea nasceu e cresceu. A jogar com uma bola de trapo nas ruas esventradas de uma Bucareste ainda a recompor-se das sequelas da II Guerra Mundial, o pequeno aspirante a futebolista não tinha na pobreza o único obstáculo: o regime de Nicolae Ceausescu haveria de condicionar-lhe os passos e adiar o salto inevitável que a sua capacidade anunciava.
Dono de um pé direito invejável, cedo começou a dar nas vistas no Scoala Sportiva e rapidamente saltou para as camadas jovens do Dínamo Bucareste. Quando decidiu investir no curso de Economia, porém, perdeu a carruagem dos treinos e acabou emprestado ao Sportul, um clube universitário da capital. Para qualquer outro jogador, poderia ter sido o fim de uma carreira que nunca chegara a começar. Mas Lucescu não era qualquer um.
“Era diferente dos demais. Era um intelectual que adorava livros. Vi-o como o homem ideal para nos representar em campo e manter uma boa relação entre o treinador e os jogadores”, diria, anos mais tarde, Angelo Niculescu, seleccionador de uma Roménia que afastou Portugal na fase de qualificação para o Campeonato do Mundo de 1970.
Auto-rádio, o prémio para o melhor jogador
Começava, aos 23 anos, a era de Lucescu com o estatuto de capitão da selecção romena. Ele que coleccionara a primeira internacionalização ainda como jogador do Sportul, então a competir no segundo escalão do país: foi a 2 de Novembro de 1966, num triunfo sobre a Suíça por 4-2, para o qual o extremo direito (que nessa partida alinhou do lado contrário) contribuiu com nada menos que quatro assistências.
Um ano volvido, estava de regresso ao Dínamo, para se assumir como uma referência incontornável do clube (cumpriria 250 jogos, com 57 golos pelo meio). E foi nessa condição que integrou a comitiva da Roménia que estagiou no Brasil, na véspera do Mundial de 1970. O Inverno nos Balcãs era demasiado rigoroso para uma preparação adequada e a viagem transatlântica permitia o contacto com uma realidade mais próxima da que a selecção iria encontrar no México.
Nessa tournée, a Roménia disputou dois jogos em Belo Horizonte, um em Porto Alegre e ainda um minitorneio no Rio de Janeiro, com os argentinos do Independiente, o Flamengo e o Vasco da Gama. Lucescu foi eleito o melhor jogador da competição e premiado pela organização com um auto-rádio. Ironicamente, o aparelho estava destinado a equipar um Volkswagen, carro que o romeno nunca teve.
Certo é que o extremo tinha causado boa impressão fora de portas e a prova cabal chegaria em Maio, numa carta dirigida ao ministro dos Negócios Estrangeiros da Roménia. Com a assinatura de Francisco Laport, o presidente do clube, o Fluminense pedia ao Governo que autorizasse Lucescu a jogar durante a pausa do Inverno seguinte no Brasil, algo que já acontecera com futebolistas de outros países comunistas. O pedido foi declinado, tal como seriam rejeitadas outras propostas vindas do centro da Europa.
Hunedoara, o início da aventura
Mircea estava amarrado ao futebol romeno, mas não necessariamente a Bucareste. E o terramoto que sacudiu a capital em 1977, destruindo a casa onde morava, foi o mote que acelerou uma nova etapa na carreira. A mulher, Nely, insistiu para que mudassem de ares e o capitão do Dínamo solicitou ao clube a saída para um emblema do interior do país. A vida do modesto FC Corvinual Hunedoara estava prestes a mudar.
Aos 32 anos, desenhava-se o início do fim do percurso como jogador e o raiar de um treinador de classe mundial. Primeiro como jogador-treinador, depois como técnico a tempo inteiro, Mircea Lucescu sagrou-se campeão da II divisão em 1979-80 e assegurou a subida de escalão a um clube que ajudara a promover também nas crónicas que escreveu na imprensa local e nos programas de rádio em que interveio. Estavam lançadas as bases para a primeira – e única – presença europeia do Hunedoara, naquela que foi a era dourada da história do clube.
Já nesse tempo, a ideia de jogo que ainda hoje defende estava bem delimitada na sua cabeça. Um futebol ofensivo, com saídas rápidas para o ataque e jogadores versáteis no último terço do terreno, aproveitando a fantasia e o que de melhor a matriz brasileira tinha para oferecer. “Se jogares bem, podes perder algumas vezes mas depois começas a ganhar. Se jogares mal, podes ganhar algumas vezes mas depois começas a perder”, argumentava.
A qualidade de Lucescu, agora do lado de fora do relvado, foi rapidamente detectada e a promoção à selecção romena foi um passo natural. Entre 1981 e 1986, alcançou a qualificação para o Euro 1984, mas o facto de não ter conseguido repetir a proeza dois anos mais tarde, no acesso ao Mundial do México, contribuiu para fechar o ciclo. Atrás de si, porém, tinha semeado uma árvore que daria frutos em breve.
Relação estreita com os jogadores
“Ele é um visionário, tem uma forma incrível de ver as coisas. Eu era apenas um miúdo nervoso nessa altura e ele disse a toda a imprensa que eu ia ser um dos melhores da Europa”. A frase, em jeito de tributo, é de Gheorghe Hagi, um dos maiores números 10 da história do futebol romeno, que chegou à selecção justamente pela mão de Lucescu.
Hagi foi apenas um dos inúmeros futebolistas que saltaram para um outro patamar com o empurrão do técnico romeno. E a face mais visível desse trabalho começou na Ucrânia, 15 anos depois do fim do fantasma de Ceaucescu e 14 anos após o início de uma carreira no estrangeiro. Pisa, Brescia, Reggiana, Inter Milão, Galatasaray e Besiktas (com dois regressos a Bucareste pelo meio) foram as estações nas quais foi parando ao longo de um percurso que mereceu cabal reconhecimento em Donetsk.
O futebol frio e mecanizado que encontrou na Ucrânia foi combatido com um dos seus antídotos de eleição: a arte brasileira. Luiz Adriano (AC Milan), Douglas Costa (Bayern Munique), Willian (Chelsea) ou Fernandinho (Manchester City) são apenas alguns dos frutos que soube deixar amadurecer e apanhar no momento certo, numa colheita que tem sido capaz de renovar ano após ano.
Quando pedem ao plantel do Shakhtar que destaque uma característica no treinador, a exigência é a primeira a surgir. Há quem mencione a metodologia de treino ou a forma quase doentia como escalpeliza os adversários, mas a relação estreita que mantém com os jogadores está no topo da pirâmide. Provavelmente uma herança dos tempos em que se treinava às ordens de Victor Stanculescu, na década de 1960. Nessa época, o então técnico do Dínamo manifestava especial preocupação em manter em alta a confiança da equipa. De tal forma que, nos jogos fora de portas, se dispunha a tocar guitarra para entreter a comitiva.
A Lucescu não são conhecidos dotes musicais, mas uma bagagem cultural invulgar (fala seis idiomas, um dos quais português) e uma capacidade férrea de contornar as adversidades. Nos últimos anos, sobreviveu a um ataque cardíaco e a um gravíssimo acidente de automóvel. E continua a ajudar Donetsk, com os seus feitos desportivos, a superar os efeitos da guerra civil que tomou conta do Leste do país. Enquanto por lá se mantiver, os ucranianos terão sempre algo a que se agarrar: o futebol.