Laurel e Hardy em África
Ainda não é desta que a idiossincrasia de Hugo Vieira da Silva resulta num filme realmente satisfatório. Mas é fácil conceder que é o seu falhanço mais interessante.
Terceira longa-metragem de Hugo Vieira da Silva, depois de Body Rice e Swans, Posto Avançado do Progresso é porventura o seu projecto mais original, partindo da adaptação livre de um conto de Joseph Conrad transposto para o contexto colonial português. Algures no interior da selva africana, nas margens do Rio Congo, num entreposto isolado que se dedica ao comércio de marfim, dois homens, brancos e portugueses, esperam e desesperam pelo barco que, terminada a sua “comissão de serviço”, os leve dali para fora.
Não deixará de se ver Posto Avançado do Progresso como mais um filme a investigar ou reflectir o passado colonial português em África, voga que tem tido bastantes exemplos recentes – pode ser coincidência, mas há um ou dois momentos no filme de Vieira da Silva (em especial na sequência em que se torna um “filme mudo”) que o espectador acolhe como uma piscadela de olho ao Tabu de Miguel Gomes. Em todo o caso, o que o filme tem a dizer ou a mostrar transcende a questão portuguesa: é a malaise colonial, que Conrad tanto descreveu, em todo o seu esplendor, a ilusão de riqueza jogada contra o mal estar dos “trópicos”, o calor pegajoso, o tédio, a impossibilidade de relacionamento verdadeiro com as populações locais. Nesse aspecto Posto Avançado lembra, e em nosso ver sofre bastante com a comparação, o último filme de ficção de Chantal Akerman, A Loucura de Almayer (2011), que também adaptava Conrad e dava essa vertigem, alucinatória inclusive, de forma bem mais profunda e perturbante.
Naquilo que tem de melhor, no entanto, Posto Avançado recorda mais Beckett do que Conrad, com os seus dois homens (Nuno Lopes e Ivo Alexandre) a parecerem variações sobre Vladimir e Estragão, e a dissolverem-se lentamente numa espécie de loucura e progressivo abandono à medida em que cada vez menos acontece (nem enriquecem com o marfim nem se vão embora dali). O filme nunca é muito interessante quando se “abre”, quando põe estas duas personagens em relação com o meio ambiente, sejam os indígenas seja a natureza (filmada com recurso a efeitos fotográficos “desnaturalizantes”, quase uma natureza “de estúdio”, que ora lembra Sokurov ora lembra o Apichatpong de Tropical Malady). Torna-se esparso, pouco coeso, e a grande maioria das cenas é bastante banal. Mas toca numa tecla justa quando se concentra naqueles dois desgraçados, nas suas ilusões de grandeza e superioridade constantemente contrariadas, na hierarquia de poder que se estabelece entre eles, nos momentos, por exemplo as cada vez mais escassas refeições, em que tudo descamba para um teatrinho absurdo e muito físico (o contraste morfológico entre os dois actores não parece inocente: talvez Vieira da Silva estivesse a pensar num Laurel & Hardy em África). Pena que, sempre que sai desta base, o filme se torne tragicamente desequilibrado, e inclua mesmo uma sequência (a citada sequência “muda”), que explicitando e simulando os maneirismos do cinema mudo parece completamente anedótica e auto-destrutiva.
Em resumo: ainda não é desta que a idiossincrasia, certamente singular, de Hugo Vieira da Silva, resulta num filme realmente satisfatório. Mas é fácil conceder que é o seu falhanço mais interessante.