“Queens”: as “inesperadas” mulheres do Botswana que vivem para o heavy metal

No Botswana, uma comunidade de mulheres leva o heavy metal muito a sério. Veste-o dos pés à cabeça, acabando por combater uma sociedade religiosa e patriarcal. Paul Shiakallis fotografou as "Queens" para o projecto “Leathered Skins, Unchained Hearts”

Vicky é uma das Queens retratadas Paul Shiakallis
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Vicky é uma das Queens retratadas Paul Shiakallis
Paul Shiakallis
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Paul Shiakallis

Cai a noite e elas vestem-se de negro. Casaco de cabedal, calças com tachas, pulseiras de picos, correntes ao dependuro. Vestem-se a preceito para o concerto que as espera. São as “Queens” e levam a música, o heavy metal, muito a sério. No Botswana, a vaga de bandas de rock clássico da década de 1970 evoluiu, com o tempo, para sonoridades mais pesadas. Hoje, no país com quase dois milhões de habitantes, o heavy metal tem uma vitalidade, talvez, surpreendente — Skinflint, praticantes de “metal africano”, Wrust e Metal Orizon são alguns dos cartões de visita.

Daqui nasceu uma subcultura que derruba muitas das imagens estereótipadas de África: os “Marok”, “rockers” em tswana. São homens, fãs de heavy-metal, que se vestem de cabedal preto da cabeça aos pés, sempre que a música o exige. Um estilo próprio que incorpora influências das bandas de metal clássicas, do universo motard e, até, dos cowboys dos filmes americanos. Já os conhecemos do “The Guardian”, das fotografias the Frank Marshall, da BBC, de outros órgãos internacionais. Mas nunca as víamos a elas, às botswanas fãs de heavy metal. As “Queens” (“Rainhas”), como se intitulam, são mulheres que querem ouvir a "sua" música, ir a concertos, vestir-se como desejam sem serem "julgadas" e "reprimidas". Desta forma, e mesmo que inconscientemente, acabam por combater uma sociedade altamente religiosa e patriarcal. Em todo o país, deverão ser mil, 1500, estima Paul Shiakallis, fotógrafo sul-africano de 33 anos que as procurou e, durante oito meses, as retratou para o projecto “Leathered Skins, Unchained Hearts” (vê a galeria). Em entrevista ao P3, conta que ainda não deu o projecto por terminado. Quer captar mais mulheres “inesperadas”: “O público em geral não espera que as mulheres africanas estejam vestidas desta forma, espera roupas tradicionais. É estranho e enigmático”.

Como começaste o projecto “Leathered Skins, Unchained Hearts”?

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Paul Shiakallis (à direita) entre os rockers DR

Conheci pessoalmente os “Marok” em 2011, quando uma amiga, que vive no Botswana, me convidou para um festival de música. Quando os vi pela primeira vez foi um choque cultural. Tinham texanas, chapéus de cowboy, pensei que trabalhavam na agricultura. Só depois reparei no couro, que todos vestiam roupa preta em pele e t-shirts de metal e que, nos concertos, faziam o “sinal do diabo” com as mãos. Aí percebi: são fãs de heavy metal que parecem ter o seu próprio estilo e que o levam muito a sério. Em 2014, a mesma amiga casou-se e convidou-me para o casamento. Foi aí, em Setembro, que conheci a primeira mulher “Marok”, a primeira “Queen” (“Rainha”). Desde aí passaram-se 16 meses a documentar. Não necessariamente a fotografar, também a conversar com elas, a enviar e-mails, a telefonar-lhes. O projecto está praticamente terminado, mas continuo a fotografar porque sinto que preciso de mais retratos caso queira fazer um livro ou uma exposição.

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Paul intercala os retratos das Queens com fotografias de paisagens para mostrar de onde elas vêm Paul Shiakallis

Quem são estas mulheres?

São africanas, negras, do Botswana, falam tswana. São, na sua maioria, mães, muitas têm filhos. Algumas são polícias, outras são militares, algumas trabalham em safaris. Diria que nenhuma delas tem empregos com salários altos, têm rendimentos baixos. Alguns dos maridos ou namorados são metaleiros, outros não. Não é uma sub-cultura jovem — conheci “Queens” dos 21 aos 45 anos, mas a maioria está entre os 30 e os 40 anos. No Botswana, a educação é muito orientada pela família. É difícil ter um pensamento livre e espaço para experimentar até teres a idade em que podes pensar por ti próprio. Ou seja, é quando são mais velhas que têm a liberdade para fazer estas coisas — as mais jovens vivem mais "vidas duplas". Conheço uma que é “Queen” em segredo. O marido não gosta desta música, não gosta que ela a ouça ou que vá aos concertos. Ela mente-lhe: diz que vai visitar uma amiga e, em vez disso, vai a um concerto. Mesmo algumas mulheres cujos maridos são “rockers”, eles não aprovam que elas o sejam, o que é muito estranho.

Que tipo de música é que ouvem?

Então… não vão juntos aos concertos?

As Queens são muito tímidas, conta Paul, recordando a reacção delas ao verem as fotografias pela primeira vez

O patriarcado na sociedade do Botswana é muito forte, os homens são muito controladores. Não gostam que as suas mulheres sejam vistas com outros homens, que passem tempo com eles ou mesmo que sejam reconhecidas como “rockers”. Sentem que os homens é que merecem esse reconhecimento porque começaram o movimento.

Qual é a relação entre o Botswana e o metal? Paul arrisca uma resposta e explica as influências do estilo dos Marok

Foi difícil que elas confiassem em ti?

Apesar de os brancos serem muito bem recebidos, admito que, sendo um fotógrafo branco e da África do Sul, foi difícil entrar naquela esfera. Pensam que só queres explorá-las e ganhar dinheiro. Elas estavam preocupadas também com o que é que ia acontecer às fotografias, para onde é que iam, penso porque algumas ainda estavam a fazer o “coming out” como “rockers”.

“Coming out” é uma expressão que é muito usada no contexto LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexuais). Elas são discriminadas?

Sim. A grande percepção dos “rockers” pelo público em geral é que são satânicos, que adoram o diabo, que são indivíduos loucos e vândalos pela forma como se vestem, com roupas pretas. É muito extremo. A sociedade do Botswana é muito religiosa e agora estão a aparecer muitos grupos religiosos e falsos profetas, o que faz com que as pessoas acreditem: ok, se não estás no grupo, se estás fora da norma, és satânico. No meio disto, é ainda mais difícil para uma mulher tornar-se “rocker” do que para um homem por causa da dinâmica patriarcal: os homens são os chefes da casa então podem fazer o que querem, por isso são muito verbais sobre serem “rockers”. Para as mulheres é muito mais difícil. A sociedade espera que elas sejam submissas, perfeitas, sérias, que vão à igreja e sejam umas “senhoras”. Essa é a dinâmica.

Estas mulheres lutam contra uma sociedade dominada por homens?

A mentalidade é muito conservadora. Acho que elas não percebem a fundo que o fazem. Realmente revoltam-se contra o patriarcado, mas não estão 100% conscientes disso. Querem poder ser vistas e reconhecidas como mulheres e como parte de um grupo que permite que elas sejam reconhecidas, mas não me parece estejam propositadamente a lutar contra o patriarcado.

Este movimento não tem então intenções nesse sentido?

Acho que tem mais a ver com auto-expressão, sensação de pertença, com a liberdade de fazer, de, de certa forma, enlouquecer. Com uma vontade de se deixarem ir sem serem reprimidas.

Só querem vestir-se como querem e ouvir a sua música.

Sim, sem serem julgadas.

Elas só se vestem assim para os concertos. Conheceste-as antes ou depois? São muito diferentes?

Muito. Conheci-as com as roupas de cabedal primeiro e só depois as vi como se vestem normalmente. Geralmente, como são pessoas com rendimentos baixos, não vestem roupas "da moda", usam as roupas pela função. E quando se vestem como “Queens” é totalmente diferente. Há a ideia de estilo, de moda e preocupam-se com pequenos acessórios. Gastam mais dinheiro nas roupas em couro do que nas roupas do dia-a-dia.

Porquê fotografá-las nas suas casas?

Queria mostrar o lado mais suave. Sentia que precisava de apresentar mais a personalidade e o “background” e também mostrar que não são particularmente ricas. Ao fotografá-las dentro das casas tenho esse contraste muito forte. Consegues vê-lo: algumas paredes não foram pintadas, não há tapetes ou soalho, só as coisas essenciais. Vês o contraste entre o que estão a vestir, a opulência delas próprias e os interiores delapidados. Fotografei algumas em cozinhas e salas de estar também para mostrar as condições sociais, o ambiente em que elas estão condicionadas, como domésticas.

E porquê misturar os retratos com fotografias de paisagens?

Essas fotografias foram tiradas em todo o Botswana e mostram o ambiente rural o país. É quase como, depois de as fotografar, mostrar de onde é que elas vêm. Não vivem em subúrbios de luxo ou cidades populosas. Outra coisa é que as paisagens foram fotografadas no crepúsculo, ao anoitecer; é como um cruzamento entre o dia e a noite, o que remete para o simbolismo da transformação das próprias “Queens”, do dia para a noite.

O que liga estas mulheres? É uma comunidade forte?

A música é o ponto mais importante. Depois, liga-as também as semelhanças do seu percurso. Elas são bastante chegadas. Algumas, aliás, juntam-se ao movimento por causa dessa camaradagem, querem relacionar-se com outras mulheres. Mesmo que saibam que podem encontrar-se com os “rockers” homens e divertirem-se, essa relação é muito diferente da que têm entre mulheres porque elas partilham os mesmos desafios, os mesmos problemas: a igreja que as tenta “converter” para se tornarem "pessoas normais”, a sociedade que as critica e pergunta por que razão vestem roupas pretas. Algumas dizem que se tornam tão próximas umas das outras que quase parece que estão num grupo da igreja. Se alguém está com falta de dinheiro ou teve um acidente, todas contribuem. Os laços são muito mais firmes entre mulheres do que entre os homens “Marok”.

No teu site, alternas fotografias do projecto com frases das “Queens” que entrevistaste. Uma delas diz, a propósito do papel da internet, algo que me intrigou: “(…) Acredito que o Facebook te permite ser quem tu és”. Qual é a importância das redes sociais para esta comunidade?

As redes sociais são muito importantes. É o que faz com que mais “rockers” se juntem ao movimento, mais do que os próprios concertos. É lá que podem publicar as fotografias, dizer que álbum compraram, a que concerto foram. Elas também viram que as minhas fotografias poderiam dar um empurrão ao movimento, para que mais mulheres se juntassem — fotografias fortes de mulheres africanas metaleiras inspiram mais mulheres a juntarem-se. Também usam as redes sociais como um meio de “coming out”, para mostrar aos amigos e famílias: é assim que eu sou, esta é a vida que eu tenho vivido e não vou mudar.

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