Nina Simone e o problema de “branqueamento” de Hollywood

O filme Nina, protagonizado por Zoe Saldana, está ser criticado por ter escolhido uma actriz de pele clara para interpretar Simone, cuja pele era muito mais escura. Não é caso único. E é revelador do que se passa em Hollywood.

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Zoe Saldana em Nina dr
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A actriz Zoe Saldana na cerimónia dos Óscares em 2015 REUTERS/Mario Anzuoni

Bom, não demorou muito. Poucos dias depois da cerimónia dos Óscares que criticou Hollywood por não ser mais etnicamente inclusiva surgem provas de que o racismo estrutural da indústria está tão desgovernado como sempre esteve. Primeiro, apareceu o primeiro poster do biopic de Nina Simone, Nina, seguido de um trailer na Internet.

O filme, protagonizado por Zoe Saldana, foi desfeito em pedaços por ter escolhido uma actriz de pele clara para interpretar Simone, cuja pele era muito mais escura. Começaram a ser atiradas palavras como blackface – em alusão aos actores que, desde meados do século XIX, pintavam a cara de preto e exageravam o tamanho dos lábios para representar estereótipos de negros que cantavam e dançavam – e minstrel – os espectáculos das trupes itinerantes com esses actores e cantores mascarados de negros. E os responsáveis pela gestão do legado de Nina Simone twittaram à actriz “por favor tire o nome de Nina da boca. Para o resto da sua vida”.

A sensação de traição era palpável, visto que a identidade de Simone – uma mulher que combateu não só o racismo, mas o “colorismo”, a discriminação em torno dos tons de pele na comunidade afroamericana – parecia ter-se tornado  uma vez mais invisível por causa de uma narrativa que defende que "mais claro é melhor". É um apagamento fortemente enraizado na cultura cinematográfica, que desde a sua génese tem como prática comum denegrir e distorcer os corpos negros ao mesmo tempo que eleva os corpos brancos como padrão falsamente “universal”.

E mal a polémica Nina tinha irrompido, o filme Whiskey Tango Foxtrot era mostrado aos críticos e aos primeiros espectadores. Este filme, protagonizado por Tina Fey como uma divertida e intrépida jornalista de televisão desastrada enviada para cobrir a guerra no Afeganistão, utiliza em seu benefício o facto desta actriz ser naturalmente calorosa e conseguir equilibrar o drama, o romance e a comédia de uma forma admirável. Mas no meio do que poderia ter sido um delicioso filme divertido de Inverno, os espectadores são presenteados em Whiskey Tango Foxtrot com o espectáculo repulsivo de dois actores brancos - Christopher Abbott e Alfred Molina – a fazerem de duas figuras-chave afegãs, um debaixo de camadas de pó bronzeador e de um pakol [o chapéu típico afegão] e o outro a espreitar por detrás de uma barba farfalhuda.

Que raio se está passar? Ou, para citar John Oliver sobre o facto de Hollywood fazer whitewashing e usar constantemente actores brancos para interpretar outras etnias: como é que isto ainda é uma questão? 

Entre Nina, Whiskey Tango Foxtrot e o também recente Gods of Egypt – que também foi criticado por ter escolhido actores brancos, desta feita para interpretarem personagens do Norte de África – parece que Hollywood continua preso numa rotina tóxica e tautológica em que os estúdios não dão luz verde a filmes que não tenham no elenco estrelas de sucesso internacional, e essas são quase sempre brancas. (Saldana, note-se, é de origem étnica mista).

Foi seguramente assim que Emma Stone acabou por interpretar uma personagem parte chinesa, parte nativa havaiana em Aloha, de Cameron Crowe, um erro desastroso pelo qual o realizador viria a pedir desculpas. E foi essa a desculpa que o realizador Ridley Scott deu quando foi confrontado por ter escolhido Christian Bale para ser Moisés no seu épico bíblico Exodus: Deuses e Reis, com Joel Edgerton, John Turturro e Ben Kingsley.

“Não consigo montar um filme com este orçamento, em que tenho de contar com perdões fiscais em Espanha, e dizer que o meu actor principal é o Mohammad não-sei-quê de não-sei-onde", disse Scott à Variety antes de o filme ter estreado em 2014. "Simplesmente não vou ter financiamento. Por isso a questão nem se levanta”.

A história de Ridley Scott é familiar em Hollywood, onde circulam listas com nomes de estrelas numa coluna e os seus valores de bilheteira noutra (é uma lista que os actores nunca devem ver, para evitar que se enrolem em casa em posição fetal e nunca mais de lá saiam). Mas, cada vez mais, a lógica do financiamento e escolha de elencos centrados em brancos está a começar a esmorecer. É só ver a péssima prestação de Gods of Egypt no fim-de-semana: uma aventura de espadas e sandálias que se afundou como uma pedra apesar do seu elenco branco aprovado pelo marketing.

Já o Exodus de Ridley Scott, entretanto, fez números bons mas não espectaculares, algo que raramente é mencionado quando os executivos dos estúdios recorrem aos mesmos velhos argumentos sobre rentabilidade e bilheteiras. O que os investidores inconstantes podiam encarar como tiros certeiros para conquistar os públicos revela-se agora o tipo de pensamento chauvinista que sempre foi. Longe de atrair espectadores recalcitrantes, a perspectiva de mais actores brancos (ou, no caso de Saldana, de pele mais clara) a interpretarem personagens culturalmente específicas vai provavelmente afastar esses públicos.

Em parte, isto é fruto de uma consciencialização do público, graças a campanhas mediáticas como #OscarsSoWhite. Mas, fundamentalmente, é resultado da mudança das expectativas de um público que é mais literato do que nunca e mais faminto por imagens que lhe devolvam o mundo vibrante e multicultural em que vive. A magia do cinema sempre derivou da combinação de realismo e poder emocional transmitido por uma grande actuação. Nada quebra o feitiço mais depressa do que um actor mal escolhido com dificuldades num papel para o qual nunca foi o acertado.

Em vez de se perderem na história no ecrã, os espectadores dão por si distraídos por má maquilhagem ou por próteses demasiado óbvias. Em vez de se envolverem na verdade emocional que o actor está a tentar transmitir, ficam à distância de uma personagem. A falsificação nunca pode substituir a forma como um actor desaparece num papel e o público consegue cada vez mais distinguir esses momentos.

O whitewashing é um tema profundamente político, alicerçado no facto de só algumas histórias conseguirem ser contadas no meio dominante da nossa era [o cinema] e, no facto, de quem é que [em Hollywood]  tem a oportunidade de as contar. Mas, à medida que os espectadores se tornam mais sofisticados, é também uma questão estética, que basicamente se trata do que aceitamos ou não quando entramos num mundo imaginado no ecrã. Para que uma actuação soe verdadeira, tudo tem de estar afinado – e isso começa com a escolha do instrumento certo.

 

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

        

      

 

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