Descodificação do genoma do percevejo-de-cama revela os seus segredos íntimos
Parasita que se alimenta de sangue humano tem estado a proliferar na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália. Sequenciação do seu genoma identifica os genes que podem estar envolvidos na resistência aos insecticidas.
A história de sucesso dos percevejos-de-cama tem pelo menos 3000 anos de registos arqueológicos, mas estes insectos terão passado dos morcegos para os humanos há mais tempo. Ao longo da Idade Média e dos séculos seguintes, há registos históricos destes insectos na Alemanha, na França e na Inglaterra, mostrando uma expansão. No início do século XX, estes parasitas eram uma constante no mundo ocidental, mas o uso de insecticidas após a II Guerra Mundial parecia ter posto um fim a esta praga. Nos últimos 20 anos, tudo mudou e houve um ressurgimento dos percevejos. A resistência aos insecticidas, o turismo e a compra de móveis em segunda mão são algumas das razões apontadas.
Agora, duas equipas independentes sequenciaram o genoma do insecto, revelando os genes que podem estar associados às novas resistências, assim como os genes importantes para a digestão do sangue, o seu alimento exclusivo. Os dois trabalhos foram publicados recentemente na revista Nature Communications.
“Os percevejos-de-cama quase desapareceram do quotidiano humano na década de 1940 por causa do uso generalizado do [diclorodifeniltricloroetano, o famoso] DDT. Mas, infelizmente, o seu uso excessivo contribuiu para questões de resistência tanto nos percevejos como noutros insectos que provocam pragas”, diz Louis Sorkin, zoólogo do Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, e autor de um dos estudos, que envolveu várias instituições norte-americanas e uma holandesa. “Hoje, uma grande percentagem de percevejos-de-cama tem mutações genéticas que os torna resistentes aos insecticidas usados normalmente nas batalhas contra as pragas. Isto torna o controlo dos percevejos imensamente trabalhoso”, diz o zoólogo, citado num comunicado daquela instituição.
Estas resistências estão inscritas no genoma daquele insecto em mutações de genes que comandam o fabrico de importantes receptores celulares do sistema nervoso – que são alvos dos insecticidas – e em 273 genes de proteínas da cutícula (a pele resistente do percevejo), que é a primeira barreira contra os insecticidas, adianta um comunicado da Universidade de Cincinnati, dos Estados Unidos. Esta é uma das instituições que integraram o segundo estudo, que contou com o trabalho de investigadores na Alemanha, nos Estados Unidos, na França, Índia, Nova Zelândia, no Reino Unido, na Suíça e em Taiwan.
De acordo com este segundo estudo, o Cimex lectularius, o nome científico do percevejo-de-cama das regiões temperadas que foi estudado (há três espécies de percevejos-de-cama), tem cerca de 14.220 genes que comandam o fabrico de proteínas. O Cimex lectularius tem cerca de cinco milímetros de comprimento, é oval e achatado, e tem uma cor castanho-vermelhada. Uma única fêmea com ovos pode causar rapidamente uma infestação em todo um edifício, já que põe entre 200 e 500 ovos em dois meses.
Os parasitas picam as pessoas à noite. A saliva do percevejo tem várias substâncias que não só impedem a coagulação do sangue durante a picada como anestesiam o hospedeiro, que assim não as sente. Os genes que comandam a produção de algumas destas substâncias também foram identificados. A segunda equipa encontrou ainda sete ou oito genes que comandam a produção de aquaporinas – as proteínas das membranas das células que funcionam como bombas de água. O sangue é um alimento muito rico em água e os percevejos necessitam destes canais para expulsarem o excesso de água.
Como as pessoas não sentem o ferrão dos percevejos, nos locais onde eles existem, é vulgar as pessoas terem várias picadas seguidas no corpo, que podem fazerem comichão e borbulhas dois ou três dias depois. Se alguém estiver a ser atacado por muitos percevejos, é possível sofrer de anemia e ataques de asma devido às substâncias alergénicas injectadas pelos insectos. As pessoas afectadas por uma praga podem ter dificuldade em dormir e desenvolver problemas psicológicos.
Um ano sem alimento
Para se ter uma noção da urgência destes estudos, é preciso compreender a dimensão actual desta praga. Nos últimos 20 anos, há indicações da expansão do percevejo nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e na Austrália (que em sete anos viu os casos de infestação aumentarem 45 vezes). Nos EUA, a praga afecta 50 estados e não pára nos lares, atingindo também as lojas e outros estabelecimentos.
O percevejo pode ficar um ano sem se alimentar, o que torna fácil o seu transporte entre regiões distantes do mundo. Em Lisboa, “o aumento de afluência de turistas (…) favoreceu o desenvolvimento e a proliferação deste tipo de praga”, afirma ao PÚBLICO João Leitão, vice-presidente e director técnico da Associação Nacional de Controlo de Pragas Urbanas.
As pessoas que têm em casa uma infestação de percevejos são obrigadas a pedir ajuda a profissionais. “De ano para ano, é evidente um aumento de solicitações para orçamento e tratamento”, diz João Leitão, acrescentando que esse aumento dificulta a existência de números actualizados das infestações em Portugal. “Existem relatos de pessoas que notam problemas quando regressam de viagens. Mesmo em viagens de ida e volta a capitais europeias, onde estão uma ou duas noites.”
O trabalho feito pela equipa de Louis Sorkin analisou a actividade genética ao longo do ciclo de vida do percevejo – que tem cinco estádios larvares, as ninfas, e depois passa a adulto. Desde o primeiro estádio larvar que este insecto se alimenta do sangue. Os cientistas descobriram que é após a primeira refeição de sangue que há a maior alteração dos genes que estão a ser usados para a produção de proteínas.
Alguns dos genes que são activados após a primeira refeição estão associados a mecanismos de desintoxicação e que tornam a cutícula mais rija, dois aspectos importantes para a resistência aos insecticidas. “Isto sugere que os percevejos são mais vulneráveis durante o primeiro estádio de ninfa e que [este estádio] poderá ser um bom alvo para insecticidas futuros”, explica-se no comunicado do Museu Americano de História Natural.
Os dois trabalhos verificaram ainda a existência de bactérias que estão simbiose com os percevejos-de-cama, através de vestígios de material genético dessas bactérias presentes naqueles insectos. Uma é a bactéria Wolbachia – muito associada aos insectos –, que poderá estar a fornecer-lhes o complexo de vitamina B, que o percevejo não consegue obter a partir do sangue.
Mas o segundo trabalho encontrou uma ligação ainda mais estreita entre o percevejo e a Wolbachia e outras bactérias. A equipa identificou genes que hoje fazem parte do genoma do percevejo e que vieram das bactérias através de um fenómeno designado por transferência lateral de genes.
Estes genes não foram identificados no trabalho da equipa do Museu Americano de História Natural. “É provável que a diferença [entre os dois trabalhos] seja devido aos métodos que usámos para encontrar os genes de transferência lateral”, disse ao PÚBLICO Josh Benoit, da Universidade de Cincinnati, pertencente à segunda equipa que identificou no genoma do percevejo os genes vindos das bactérias. “Acredito que o outro grupo já investigou alguns dos genes que descobrimos e agora pensam que existem, pelo menos, alguns destes genes.”
E qual é a função destes genes que agora estão integrados no genoma do percevejo? “Parece que estes genes não estão a ser expressos [activados]”, responde Josh Benoit. Por isso, é provável que esses genes não estejam a ter qualquer função na fisiologia do percevejo-de-cama, o que ainda terá de ser confirmado em estudos futuros.