A Europa do nosso desassossego
Quando falamos hoje de diversidade cultural falamos de quê e de quem?
A chanceler alemã Angela Merkel lamentou recentemente que a Europa, com 500 milhões de habitantes, não consiga absorver e integrar um milhão de refugiados provenientes das zonas de guerra do Médio Oriente. É verdade e também é rigorosamente verdade que este fenómeno se está a converter num dos mais preocupantes sintomas de uma crise que pode vir a representar o fim do sonho de uma Europa unida, convergente e solidária. A actual crise política e social que tende a transformar fronteiras em muros e os muros em barreiras de incomunicabilidade e de ausência de solidariedade é sinónimo de afastamento e de ausência de vontades comuns e complementares, o que também coincide com significativos ganhos eleitorais da direita sobretudo em países do Leste.
Em 2011 era já notado que alguns anos após a adopção da Convenção da UNESCO sobre a protecção e a promoção da diversidade das expressões culturais a consagração do princípio que confirma e consagra o direito soberano de formular e aplicar as suas políticas culturais, constante dos artigos 5º e 6º desse documento, tinha deixado de ter relevância política, designadamente como resultado da dimensão da crise que atinge a Europa e o mundo. Essa crise continua a pôr em causa o paradigma e a tradição europeus de investimento público na cultura.
Em 2008, a despesa pública do Estado Português per capita rondava os 19 euros, a Grécia os 32, a Alemanha os 100 e a Noruega os 440. Por sua vez a Irlanda tinha, nesse ano, uma despesa de 52, 46 euros com cada cidadão e a Hungria uma despesa da ordem dos 73,12. Entretanto, alteraram-se os valores e as próprias condições de equilíbrio político dentro na União Europeia com uma acentuada e e preocupante tendência para se investir menos em cultura, incluindo a área fundamental do património.
Entre 2009 e 2011 houve países como a Alemanha, a França, a Finlândia, Malta, a Estónia, a Eslovénia e a Bélgica que mantiveram ou reforçaram o investimento no sector cultural, outros como a Áustria, a Hungria ou Chipre que conservaram o seu nível médio e outros, com Portugal incluído, que entraram num acentuado e imparável ciclo de cortes. No caso finlandês o aumento das receitas provenientes da lotaria permitiu reforçar o investimento na cultura e a Alemanha, mesmo num contexto de crise, chegou a aumentar, nesse período, em 2% o seu investimento na cultural.
Estes números referem-se a um período em que a magnitude da crise não era a que hoje conhecemos, designadamente porque o ciclo da entrada dos migrantes/ refugiados no continente muito se agravou entretanto. Falar de cultura é também, falar de cidadania. Mas é importante saber em que medida a vida cultural pode contribuir para reforçar a firmeza solidária de populações que não gostam de abrir as portas a quem vem de longe, dos territórios destroçados pela guerra, pelo fogo, pela miséria e pela intolerância religiosa e política.
Políticos europeus passaram anos a afirmar que a cultura é essencial para a construção de uma verdadeira e sustentável identidade europeia, apesar da diversidade linguística e política. Em 2004, o senador checo Jose Jarab afirmava na conferência “Novas Fronteiras para a Europa, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, que “se a cultura não for a chave da vida na União Europeia, o processo de integração europeia não chegará à maturidade”. Resta saber o que fazem hoje os criadores culturais checos, gregos e outros para que o seu trabalho criador e interpretativo ajude a Europa a conhecer-se melhor e os Europeus a sentirem segurança e solidez bastantes para defenderem o acolhimento dos que chegam de longe com outras ideias, outras filiações políticas e religiosas e sobretudo com uma diferente visão do mundo.
Mesmo tendo em conta a importância do Programa Europa Criativa com um orçamento de 1460 milhões de euros para o período de 2014-2020, tendo com o objectivo salvaguardar e promover a diversidade cultural, contribuir para o crescimento inteligente e alargar o acesso a novos públicos e mercados internacionais, bem como promover o desenvolvimento económico, é urgente que se saiba o que a cultura está dar à Europa e aos Europeus de forma a torná-los mais receptivos, solidários e intervenientes no plano da cidadania. A crise em curso também a este nível deixou marcas e contribuiu para que 500 milhões não estejam a ser capazes de acolher e integrar um milhão. Esse milhão é a diferença, o desafio, a dor que abre a ferida e que coloca perguntas para as quais nem Bruxelas nem Berlim têm respostas e, pela certa, Budapeste, Varsóvia e Praga ainda menos. Quando falamos hoje de diversidade cultural falamos de quê e de quem, neste continente que foi e é de Shakespeare, Ibsen, Cervantes, Pessoa, Strindberg, Mozart ou Nietzsche? Falamos de nós e de que futuro, tendo como cenário vital a insustentável incerteza deste tempo de desencontro e dúvida? Não há livro do desassossego, e dos desassossegos, que abarque tamanha inquietação.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores