Martinho da Arcada quer ocupar sobreloja e assumir-se como “café literário”

Espaço sobre o café frequentado por Fernando Pessoa pertence à Direcção-Geral do Tesouro. Ministério da Cultura já reconheceu o interesse cultural do projecto.

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O café tem nas paredes várias fotografias de Fernando Pessoa Miguel Manso

Por cima do histórico café Martinho da Arcada, na Praça do Comércio, Lisboa, existe uma sobreloja com uma entrada directa a partir da rua, que se faz por uma grande porta verde mesmo ao lado da esplanada. É nessa sobreloja, actualmente propriedade da Direcção-Geral do Tesouro, que o proprietário do Martinho, António de Sousa, e o escritor Luís Machado pretendem instalar o espaço Pessoa Plural – projecto que o ministro da Cultura, João Soares, considerou “de elevado interesse cultural”, num despacho que já seguiu para o Ministério das Finanças, segundo confirmou ao PÚBLICO Elísio Summavielle, adjunto do ministro (e entretanto nomeado presidente do Centro Cultural de Belém).  

A ideia, explicam os dois promotores da iniciativa, sentados a uma mesa do Martinho, é “preservar a memória do poeta Fernando Pessoa" através de uma programação com conferências, mesas-redondas, recitais de poesia, espectáculos, projecção de filmes e “eventualmente uma livraria pessoana”. Pretendem também, mensalmente, organizar no restaurante um jantar com uma “ementa pessoana”, criada por Luís Machado, autor do livro À Mesa com Pessoa.

Para isso precisam apenas que o Ministério das Finanças ceda o espaço, que, segundo afirmam, tem actualmente um “arquivo morto”. Houve também já um encontro com a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, para apresentar a ideia. O gabinete da vereadora lembra, contudo, que “o deferimento desta pretensão depende do Ministério das Finanças”.

Há muitos anos – mais exactamente desde 1991 – que Luís Machado e António de Sousa colaboram no esforço de manter actividades culturais no café (hoje restaurante, com um espaço de cafetaria à parte, com entrada própria mas sem mesas) que Pessoa frequentava assiduamente e onde, lembram, “combateu a solidão”, especialmente no final da vida. Questionados sobre se um espaço ligado ao autor do Livro do Desassossego não colidiria com a programação da Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, defendem que se trata de duas coisas diferentes.

“A Casa Fernando Pessoa é sobretudo uma casa-museu”, argumenta Luís Machado. “O Martinho está aqui num dos eixos mais nobres da cidade, por onde passam diariamente muitas centenas de turistas”. António, que é proprietário do Martinho desde 1989, diz que todos os dias recebe visitantes estrangeiros, entre os quais muitos brasileiros, que querem ver “a mesa de Pessoa” e conhecer o local onde o poeta passou muitas horas da sua vida. “Há choro aqui, há abraços, há muita emoção”, descreve.

O Martinho da Arcada – assim conhecido porque um dos seus antigos proprietários, Martinho Rodrigues, do qual recebeu o nome que mantém até hoje, tinha outro estabelecimento no Rossio, chamado precisamente Martinho do Rossio – é o mais antigo café de Lisboa sempre em actividade. Foi um dos primeiros edifícios a nascer na Praça do Comércio quando a própria praça se ergueu após o terramoto de 1755.

A 7 de Janeiro de 1782, poucos meses antes da morte do Marquês de Pombal, o Martinho abriu pela primeira vez as portas, sendo inicialmente conhecido como Casa da Neve, por aí se vender gelo e gelados. Ao longo de dois séculos, sublinha Luís Machado, “foi poiso de jacobinos, liberais, maçons, anarquistas e republicanos”, tendo por tudo isto “um valor histórico indiscutível”.

A ideia de aproveitar a sobreloja foi apresentada pela primeira vez ao anterior Executivo, de Pedro Passos Coelho, mas com as eleições e a mudança de Governo o assunto foi adiado e só agora, já com João Soares, foi retomado. Luís Machado afirma que a lei prevê a possibilidade de cedência de um espaço sem concurso público se os fins a que se destina não forem comerciais e houver o reconhecimento do interesse cultural.

O Martinho foi classificado como local de Interesse Público em 1978, mas nos anos 80 tinha entrado em decadência, receando-se então que viesse a encerrar ou a ficar totalmente descaracterizado. Foi graças aos esforços da Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada, que iniciou a dinamização cultural do espaço, que se conseguiu chamar a atenção para o problema e reunir fundos públicos para a reabilitação, da responsabilidade do arquitecto Raul Hestnes Ferreira.

Mas depois disso o espaço mudou de mãos, tendo sido comprado por António de Sousa. Agora, diz o proprietário, o Martinho quer “assumir a função de café literário, que é a sua verdadeira vocação”. “Para esta casa seria uma nova respiração”, garante. 

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