As cidades inteligentes ainda estão na "fase-piloto”
Projecto Mobi-E, que espalhou uma rede de postos de carregamento de automóveis eléctricos pelo país, é um dos raros exemplos de uma iniciativa já com escala, diz Catarina Selada, da Inteli
Muitos municípios do país andam numa corrida para tentar tornar mais poupados e inteligentes os seus sistemas de iluminação pública. Ao ritmo de cada um, que o investimento é caro, embora de retorno rápido, este é um exemplo de como a ideia das cidades inteligentes vai fazendo o seu caminho. Contudo, a maior parte dos projectos de Smart Cities, nas mais diversas áreas, ainda não passou da fase piloto e não está a ter uma aplicação em escala, assume Catarina Selada, do centro de inovação Inteli, a instiuição que pôs Portugal a pensar nas cidades do futuro.
Catarina Selada foi esta semana premiada pela Fundação Associação Industrial de Portugal por uma década de trabalho na coordenação do esforço português para tornar as nossas cidades mais inteligentes. É essa a sua área de trabalho na Inteli, entidade que está na origem do projecto de mobilidade eléctrica Mobi-E, da Rede Nacional de Cidades Inteligentes - A Rener Living Lab, ou da mais recente Smart Cities Portugal, que além dos 46 municípios da Rener LL, inclui universidades, centros de Investigação, empresas e outras organizações de um cluster que, além de poder resolver muitos dos problemas com que nos defrontamos no dia-a-dia, gera inovação, emprego, exportações.
Catarina Selada faz um balanço positivo destes dez anos a bater na tecla das Smart Cities, assumindo, desde logo, que, de tanto ser usada, a tecla está gasta. Hoje, mais do que de smart cities, ou de cidades inteligentes, fala-se em cidades do futuro. Mas mantém-se a tónica na tecnologia, vista não como um fim em si mesmo, mas como um meio de melhorar processos, poupar tempo e recursos e tornar mais transparente a nossa vida em comum nesses espaços urbanos de grande densidade demográfica onde, até meados do século, viverá 70% da população mundial.
Numa década, o projecto Mobi-E, ao qual o actual Governo deu, nos últimos dias, um novo impulso, é, porventura, o caso mais conhecido de mobilização do país para uma mudança, neste caso na mobilidade. Mas aqui, como noutros domínios, a tecnologia de carregamento de veículos eléctricos, essencial para convencer os cidadãos a mudar as suas escolhas na hora de comprar um automóvel, parece ter chegado antes do seu público alvo - todos nós, na verdade - estar convencido. Seja pelo preço dos carros, pelo estado da arte das baterias ou por outros motivos, como os da fiscalidade, a venda deste tipo de veículos tarda em disparar para níveis em que o seu efeito, na redução de emissões, se faça sentir.
Este é o único projecto de maior escala em curso, com a vantagem, nota Catarina Selada, de ser interoperável, ou seja, de beneficiar os cidadãos independentemente da cidade onde vivam. É tudo uma questão de dinheiro, ou da falta dele. Na verdade, explica Catarina Selada, e seguindo aquela que é uma tendência mundial, a maior parte dos municípios que já interiorizaram o conceito de Smart City ainda está a estudar formas de chegar a esse patamar, e só alguns estão já com projectos no terreno, a esmagadora maioria deles pilotos, ou seja em fase de teste, e financiados por fundos europeus. Não há nos orçamentos municipais grande margem de manobra e, como as soluções são pouco maduras, também o investimento privado é ainda cauteloso.
Sensores nas cidades
A excepção será a da iluminação pública. Com a tecnologia LED estável, e a cair de preço, as câmaras estão a apostar na mudança, conforme as suas disponibilidades. “O retorno, em poupança, aqui, é muito rápido. E esta sempre foi uma despesa assinalável para os municípios”, diz a directora da Inteli premiada pela Fundação AIP. Com a mudança, chegam também tecnologias para melhor gestão, ponto a ponto, da iluminação, graças a um outro esforço, invisível, que está a acontecer em algumas cidades: a multiplicação de sensores que monitorizam inúmeros parâmetros físicos e humanos.
Graças a alguns projectos testados, Porto e Lisboa estão na frente desta outra vertente, a da monitorização da vida nas cidades (clima, poluição, ruído), do uso que lhe damos quando circulamos a pé ou de carro, gastamos água ou fazemos lixo. E o desafio, a seguir, é utilizar os dados fornecidos para alterar rotinas nos cidadãos, processos nos serviços públicos, ou para divulgação em plataformas de dados abertos, a partir das quais empresas podem desenhar aplicações móveis. Como tem já acontecido, nas duas maiores cidades, em áreas como o turismo ou a mobilidade.
Cascais é apontada pela Rener LL como um bom exemplo na gestão dos lixos. Graças a sensores nos contentores, as rotas dos camiões são optimizadas dia-a-dia, com poupanças evidentes nos combustíveis e possibilidade de optimização de recursos humanos. O Porto está também a testar um sistema semelhante, e é admissível que em alguns anos esta seja a forma “natural”, e nem por isso menos “smart”, de proceder, caso haja capacidade de investimento por parte das autarquias. Porque as poupanças, essas são óbvias. A mesma tecnologia acabará por ser essencial para medição do lixo produzido por cada um de nós e para acabar com essa fórmula - nada justa, como admitia há dias o presidente da Câmara de Gaia - que associa a tarifa de resíduos sólidos à água consumida.
E falando de água, ser smart, neste caso, implica generalizar a telecontagem, para facilitar a vida dos consumidores e ajudá-los a poupar e, no campo da distribuição, de melhorar o controlo de perdas, um investimento muito caro, em modernos contadores. Neste campo, e noutra vertente, algumas cidades, como Porto, Gaia, Lisboa conseguiram enormes resultados, com poupanças generosas para os respectivos orçamentos. E os sensores, que permitem a gestão de todo o sistema a partir de um ecrã, têm um papel tremendo na disponibilização de informação rápida, e fiável, da localização de uma fuga nas canalizações. Em Gaia, as águas residuais tratadas são usadas para rega de jardins públicos, outra solução óbvia, mas não generalizada.
O papel da Rener LL passa por ajudar a disseminar pelo território estas boas práticas, através de encontros e grupos de trabalho, da informação que vem gerando e do Índice das Cidades Inteligentes, que brevemente terá uma segunda edição, explica Catarina Selada. Para além dos investimentos, pesados, nalgumas áreas, a directora da Inteli nota que, face aos ritmos diferentes de mudança das tecnologias, das pessoas e das instituições, todo este processo implica muita “persistência”.
Nem tudo custa muito dinheiro. Na área da Governança, por exemplo, o consórcio de municípios está a ser estimulado a partilhar com os cidadãos os processos de decisão. O projecto Desafios Porto, em que os cidadãos foram chamados a apontar problemas na cidade e a câmara chamou empresas a tentar desenvolver soluções para os resolver, fomentando a inovação, é apontado como um exemplo excelente que vai para além dos processos mais habituais de participação: os orçamentos participativos (OP).
Para a Inteli, e para o conceito de Smart City, a participação dos cidadãos é um dos pilares das cidades do futuro, tendo em conta a ideia de que, com mais informação disponível, estes não podem ser remetidos para uma eleição, de quatro em quatro anos, e devem ser mais ouvidos. Mas, apesar de presentes em vários municípios, e com derivações para grupos específicos, como os jovens ou as associações, os OP ainda nem sequer estão disseminados. E só em poucos casos as tecnologias disponíveis são usadas para exibir reuniões de câmara e assembleias municipais, ou para promover o debate sobre projectos com impacto na comunidade.
Catarina Selada garante no entanto que a renovação geracional dos autarcas nas últimas eleições locais trouxe para o poder decisores mais abertos a estas questões. Em Valongo, por exemplo, o município está a concorrer, como finalista, a um prémio de boas práticas na administração com o seu projecto Semana da Prestação de Contas, que parte, num primeiro momento, da publicação, diária, no site da autarquia, de uma breve descrição das despesas efectuadas. O presidente da Câmara, José Manuel Ribeiro, considera que o acesso a esta informação é uma forma de dar poder aos cidadãos. Os tais que, mais do que a tecnologia, são, e terão de ser, o centro das atenções das cidades do futuro, insiste Catarina Selada.