"As pessoas que sentem o peso da justiça são as que têm menos recursos"
São da geração pós-independência. Estudaram fenómenos como a imigração ou os sistemas políticos. A são-tomense Nayda Almeida é a quarta dos cinco pensadores africanos entrevistados nesta série.
Nayda Almeida, assessora jurídica da governadora do Banco Central, 32 anos, estudou em São Tomé e Príncipe até terminar o liceu. Depois foi para Portugal licenciar-se em Direito pela Universidade Católica de 2001 a 2006. Recebeu o certificado a 15 de Julho, a 1 de Agosto estava em São Tomé, “com a ânsia toda de vir e trabalhar e contribuir”. Mas chegou e teve “um choque de realidade”, percebeu “que não basta acabar uma licenciatura” para estar pronto a agir. Fez dois estágios em instituições públicas, não sabia bem o que queria fazer, até que foi de novo para Portugal. Em Lisboa fez o estágio como advogada, trabalhou num escritório até regressar de novo a São Tomé. Especializada em recursos naturais, foi no ano passado uma das oradoras das conferências TedX São Tomé e Príncipe, conferências onde se espalham ideias, e aqui falou sobre “como a justiça pode ser justa para todos”. É isso que explica nesta entrevista.
Como é que a justiça pode ser mais justa para todos?
A resposta não vai ser tão objectiva. Não é que pense que a justiça nunca será justa para todos em São Tomé e Príncipe — espero, até porque faz parte do meu trabalho, contribuir para que se chegue a esse ponto, mas eu defendo mais a perspectiva de "como podemos fazer para que a justiça seja um pouco mais justa".
Um dos grandes handicaps da justiça em São Tomé — e no resto do mundo — é que as pessoas que sentem o peso da justiça são as que têm menos recursos. Aqueles que têm menos possibilidade de se defenderem são os mais fracos. Na minha perspectiva o caminho tem que ser feito dessa forma: que a justiça seja mais justa para todos, que veja toda a gente da mesma forma, que procure ser cega para todos. Isso é um caminho muito árduo a percorrer.
Quais são os caminhos para mudar isso?
Um dos possíveis caminhos, e para mim o principal, é através da educação. Temos um trabalho muito, muito grande a fazer para elucidar as pessoas. O que sinto, do que conheço da realidade de São Tomé, é que a grande maioria da população desconhece os seus direitos — estamos a falar de direitos mais básicos, constitucionalmente consagrados. Às vezes as pessoas vêem aquilo que é um direito como um favor que alguém lhes está a fazer para os ajudar.
Conheci uma menina, 14 anos, que não está registada pelo pai. Perguntei porquê. Disse-me que o pai não quis saber dela, foi sempre a mãe que cuidou dela. Perguntei porque não ia ao Ministério Público, disse que o pai tinha obrigação de a registar, que ela tinha direito a ter o nome do pai. Ela respondeu que a mãe não queria chatice, porque depois lhe iam exigir muitas coisas, porque não tem dinheiro... Ou seja, não há consciência que é um direito que ela tem, a mãe não o sente e não se sente encorajada a lutar por isso. É também uma questão de mentalidade e por isso digo que é um dos aspectos que têm que ser vistos para se chegar a esse bom porto.
É mesmo preciso trabalhar muito a educação e sensibilização das pessoas; menores são violados e os pais não apresentam queixa porque têm vergonha ou, pior, porque pensam: ‘vou apresentar queixa e não vai adiantar de nada ao violador e eu é que vou ficar mal visto, a minha filha vai ficar marcada para o resto da vida, isto é uma sociedade peque...’ Então são situações que vão deixando de ter amparo da justiça porque as pessoas não estão verdadeiramente consciencializadas de que a justiça existe para servi-las. Também não se sentem encorajadas porque, muitas vezes, nos poucos casos que são apresentados à justiça o tratamento não encoraja a desenvolvimentos futuros.
Que é preciso reformar na justiça em São Tomé e Príncipe?
Não vejo apenas a reforma da justiça, a nível dos magistrados, como importante. É uma reforma que tem de envolver todos os actores da justiça: advogados, juízes, procuradores, funcionários judiciais, funcionários do Ministério Público, a própria polícia de investigação criminal e a polícia nacional. É todo um trabalho que é preciso ser feito para subir o nível de capacidade de resposta desses agentes.
É preciso uma reforma a nível da formação. A grande maioria dos magistrados não tem magistratura, isso é um grande handicap — a grande maioria tem licenciatura em Direito, muitos já eram magistrados antes de fazerem a licenciatura. Isso acaba por ser uma fragilidade porque já exerciam a profissão sem terem bases para o efeito e depois vão formalizar, não acredito que os ensinamentos façam grande diferença relativamente àquilo que faziam antes.
Isto aconteceu porque até há anos atrás não havia tanta gente formada. Se recuarmos um pouco mais, é ainda pior. Quando era pequena contavam-se pelos dedos de uma mão o número de advogados que exerciam em São Tomé. Eram mesmo muito poucas pessoas. Temos que ver que quando o país se tornou independente o número de quadros formados era ínfimo. Não havia pessoas formadas para ocuparem os cargos. Com a independência, os portugueses saíram, os serviços ficaram. Era preciso colocar gente para continuar a fazer esses serviços. Se não havia quadros formados na altura, promoveram a procuradores e juízes pessoas que estavam ligadas ao sector — foram pegar em funcionários judiciais, escrivões, etc, que trabalhavam já no tribunal.
Que consequências é que isso trouxe para o sistema judicial são-tomense?
O Direito é amplo e dá uma grande versatilidade mas a questão é que estamos a colocar pessoas que têm experiência prática, é verdade, mas depois não dominam aspectos base. Dizem-me que acabavam, na altura, por trabalhar muito de memória, baseados na experiência que tinham guardado do tempo colonial — estavam nos tribunais mas a desempenhar outras funções.
Sem uma base legal efectiva isso claro que, depois, dá origem a aberrações, e a tomadas de decisões que não têm base legal ou até violam a lei. Ouvia-se muito que a decisão foi tomada ‘na base da sensibilidade’. Agora ouve-se menos. Em 2010 houve um grande número de licenciados que regressaram ao país porque anos antes o governo mandou um contingente de pessoas para Cuba formarem-se me diversas áreas. Nessa altura foi um boom de quadros superiores. Neste momento até temos um mercado repleto de pessoas com formação e vai-se colmatando essas deficiências.
Como é feita a avaliação da magistratura?
Para haver mais responsabilização dos juízes e criar maior eficiência é preciso que se implemente a avaliação, mas uma avaliação regular, profunda e séria. Não temos. Acaba por criar muitos desastres no dia-a-dia da justiça. Temos processos infindáveis, que estão no tribunal uma vida inteira e como não há avaliação ou responsabilização os processos prescrevem. As pessoas não têm aquela cultura para exigir mais e os juízes sente-se donos dos processos. O juiz não sente que, se não se portar bem, isso pode ter consequências — há um conselho superior de magistratura mas não dá esse amparo.
A justiça é independente do poder político?
Na minha perspectiva há alguma promiscuidade. Não sei se é da sociedade em si mas as pessoas lidam muito umas com as outras e em alguns casos não se consegue separar verdadeiramente aquilo que é a vida privada da profissional. Posso ser a melhor amiga de uma pessoa mas quando estou a trabalhar não a conheço. Aqui sinto que é um bocadinho difícil de se fazer isso. Por outro lado, há outras questões que se colocam no meio. Acaba por ser uma influência determinada por outros interesses. Não consigo afirmar taxativamente que a justiça é independente.
Casos de corrupção são julgados com independência?
Os casos surgem. Sabe-se, há notícia. Muitas vezes são levados às instâncias judiciais. Mas depois muito poucos são levados até ao fim, condenações não me lembro. Casos flagrantes, com evidências, toda a gente sabe. Ficam uma eternidade nos tribunais, até caírem no esquecimento e ficamos sem saber porque é que as coisas acontecem — por isso acho que não há realmente independência. Eles afirmam-se independentes no sentido que, quando querem tomar alguma medida na defesa dos seus interesses, são independentes mas face ao poder político é um bocado questionável. Mas isso não é generalizado, há excepções sempre. ‘Sou juiz, tenho um processo e até quero levá-lo até ao fim’ — mas depois vem alguém que diz ‘vê lá, fulano é primo da tua prima...’. Há sempre muitas tentativas de influência para que a coisa não ande.
Faz sentido o Direito são-tomense ser um decalque do português?
Ser um decalque é problemático, mas esse não é o principal problema. A grande parte da legislação que temos em vigor é adoptada da era colonial. Ou seja, temos uma legislação muito desajustada da realidade, muito rudimentar. Por exemplo, o Código Comercial vigente hoje é o Código de 1888; claro que ouve uma ou outra mexida mas foram quase insignificantes. O Código Civil é dos anos 1960, é o mesmo do português, com a diferença que o português se vai adaptando e o nosso não muda, tirando um diploma novo para as questões da família.
Há uma grande distância entre o sistema judicial e a população?
Não sinto que o sistema judicial sirva a população como deve servir. Acaba por haver aquela máxima "dois pesos e duas medidas". Dependendo de quem é o reu o tratamento é diferente — acredito que, com o tempo, isso se vá esbater, com a entrada de novos quadros no sector. Se é um ladrão de cabras a justiça cai em cima dele a toda a força; se é um crime de colarinho branco até as mordomias a que tem direito são diferentes. Acaba por haver descrédito na justiça e as pessoas não recorrem tanto como deveriam. Depois estamos a falar de uma população cuja grande maioria não tem recursos e não se pode esperar que tenha dinheiro para as custas judiciais — acho que deve ser dada alguma atenção a esse factor para que possa servir as pessoas.
A falta de acesso à justiça acaba por prejudicar mais os pobres porque esses têm menos recursos para aceder à justiça. Depois quem não tem dinheiro não pode pagar a bons advogados, terá uma defesa mais frágil. É certo que há defesa oficiosa, mas quem a faz? Os estagiários. Em que é que isto contribui para uma defesa mais forte, se de um lado temos um advogado com experiência e do outro um estagiário?
Segunda-feira, entrevista à antropóloga cabo-verdiana Eufémia Vicente Rocha
Esta série foi realizada em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos