Winston Churchill visto por um discípulo conservador
Um retrato luminoso e divertido de um génio que não sobreviveria ao politicamente correcto do nosso tempo.
No julgamento da História não há lugar para figuras consensuais, mas há casos em que a avaliação entre o bom e o mau, entre o importante o negligenciável, entre o genial e a besta geram debates comuns aos das tribos do futebol. Veja-se o caso de Winston Churchill, que alguns consideram o mais corajoso, visionário e brilhante político século XX e outros apontam como a vulgar silhueta do imperialista, racista, alcoólico e brigão. Boris Johnson, mayor de Londres, putativo sucessor de David Cameron no Partido Conservador (o mesmo de Churchill, salvo alguns anos de interregno) e rosto principal da campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia, entra na disputa e não engana ninguém sobre o que o move: se é verdade que não se furta a analisar e a discutir os muitos pontos fracos de Churchill, também é verdade que o defende e que defende o seu legado com o ímpeto de um discípulo. Johnson tem a consciência “aguda” de que está a lidar com “um génio com uma energia e fecundidade ímpares” e o seu livro deixa transparecer essa devoção até ao limiar da hagiografia.
Não se pense, no entanto, que este fervor é condição para que se ponha de lado este livro. Pelo contrário, ao assumir uma posição e ao confrontá-la com os impactes que o “factor Churchill” teve na história britânica e mundial do século passado, Johnson abre o jogo, subtrai a obra ao rigor da análise da História e transforma-a num panfleto culto, inteligente e divertido, ao qual não falta até uma boa dose de erudição. O que o move é de certa forma o resgate de um tempo no qual a política tolerava a coragem, a determinação, o excesso de álcool e de charutos. Para o conseguir, o autor vai muito para lá da prolífica carreira parlamentar de Churchill (os seus discursos, produzidos ao longo de 64 anos, ocupam 18 volumes e 8700 páginas) ou das suas funções no Governo. O “factor Churchill” nunca teria acontecido sem a mola da sua linhagem, sem a sua frustrada relação com o pai (que o tinha por “jovem estúpido” e “decididamente indigno de confiança”), sem a sua coragem, sem a sua escrita dinâmica e criativa, sem a sua imaginação e, claro está, sem a sua propensão para os excessos.
É a soma destas características que levam Johnson a considerar que há homens que mudam o mundo e que um desses homens foi Winston Churchill. “Churchill desmente categoricamente as teses de historiadores marxistas que vêem na história uma mera narrativa de factores económicos abrangentes e impessoais. O ponto central de O Factor Churchill é que um homem pode fazer a diferença”, escreve. E porquê? “Churchill foi decisivo na fundação do Estado-providência, no início do século XX, Contribuiu para que os britânicos tivessem centros de emprego, pausa à hora do chá e subsídio de desemprego. Inventou a Royal Air Force e o tanque, e coube-lhe um papel absolutamente vital na intervenção – e posterior vitória – do país na Primeira Guerra Mundial. Foi indispensável para a fundação de Israel (e de outros países), para já não mencionar campanha em prol de uma Europa Unida”. Mas, acima de todas essas virtudes está o papel que desempenhou no momento em que a Grã-Bretanha se viu sozinha na Europa perante a máquina trituradora de Hitler.
Johnson lembra-nos que a coragem e a determinação de Churchill em lutar que hoje são vistas como opções lógicas e racionais não o eram tanto na época. A memória da I Guerra Mundial estava ainda viva, os desejos de paz e as simpatias com Hitler não eram raras. Churchill que durante anos avisou para o perigo dos “jovens teutões” a desfilarem ódio pelas ruas da Alemanha não fez, avisa Johnson, uma opção assim tão óbvia. Pelo contrário. “Pesando as duas alternativas – uma paz humilhante ou a chacina de inocentes –, é difícil imaginar que qualquer político britânico da actualidade tivesse a coragem de seguir o caminho que Churchill seguiu”, diz Johnson. Depois, vem o que se conhece. O seu discurso nos Comuns, a 4 de Julho de 1940, no qual avisa: “Lutaremos nas praias, lutaremos nos lugares de desembarque, lutaremos nos campos e nas estradas, lutaremos nas montanhas; nunca nos renderemos”. Ou o menos abordado afundamento da marinha francesa em Mers-el-Kébir, que provocou a morte de 1300 marinheiros, para evitar que a segunda mais potente armada da Europa caísse nas mãos de Hitler. “Como primeiro-ministro, o dever de Churchill era eliminar qualquer ameaça à independência do país; e fez bem em ser implacável em Mers-el-Kébir, porque na semana seguinte deflagrava a batalha de Inglaterra”, escreve Johnson.
Não é difícil conceber que sem a liderança de Churchill, sem as suas promessas de “sangue, sofrimento, suor e lágrimas” ou sem um “implacável exercício de violência” na resposta aos nazis durante o Verão de 1940, provavelmente a Grã-Bretanha teria colapsado – e com ela a Europa. Mas depois de conseguir envolver os americanos na guerra (“Com astúcia, com encanto e com bajulação pura e simples”, diz Johnson), e quando os alemães estavam a recuar no Leste, na Itália ou na Normandia, é mais difícil explicar a política de bombardeamentos das cidades alemãs que Churchill apoiou incondicionalmente. A destruição de Potsdam ou Dresden (25 mil habitantes da cidade morreram) não tinha valor militar inequívoco e levaram-no a lamentar um “mero acto de terror e de destruição gratuita”. Mas essa é sem dúvida uma nódoa de Churchill que Johnson não valoriza na devida dimensão.
Valoriza e discute sim os seus erros na tomada de Antuérpia pelos alemães na I Guerra Mundial, o desastre de Gallipoli, a sua percepção errada na crise que levou à abdicação de Henrique VIII em 1936 ou na crença de que o Império Britânico poderia conservar a Índia na era pós-1945 e demover os esforços do “faquir seminu”, como designava Gandhi. Alguns dos seus preconceitos não passam ao lado do autor: o seu alheamento na guerra sino-japonesa da década de 1930 por não ter “qualquer interesse pelas brigas dos povos amarelos”, a intenção de criar colónias penais para vagabundos ou a esterilização de doentes mentais são mencionados, mas mais como testemunhos de uma mentalidade e de uma cultura do que por defeito pessoal.
Johnson não se coíbe também de expor as qualidades de Churchill como jornalista, como criador de palavras (Cimeira, Médio Oriente, Cortina de Ferro) ou como inventor do tanque de guerra com a mesma crueza que fala dos seus vícios e extravagâncias. “Todos os dias bebia cerca de meio litro de champanhe Pol Rogers, além de vinho branco almoço, vinho tinto ao jantar, e Porto ou brandy a seguir”, e para lá dessa dieta “fumava entre oito e dez grandes charutos cubanos por dia”.
Nenhum homem que gastasse no comerciante de vinhos “três vezes o rendimento anual do trabalhador braçal da época” podia ser hoje primeiro-ministro. Churchill foi-o porque o seu tempo era de risco, um tempo ainda livre do império do gosto anódino e do politicamente correcto. “Acusam-no de racista, sexista, imperialista, sionista de suprematista ariano e anglo-saxónico, de defensor da eugenia. E quanto mais distante de nós vai ficando no tempo esse Churchill não pasteurizado, mais desagradável parece à sensibilidade do nosso paladar moderno”, escreve Boris Johnson. Até porque se é verdade que a sua voz “ressuma a Porto, brandy e charuto mastigado”, se o seu gosto por luxos “era de estarrecer”, todos os indícios “sugerem que Churchill tinha bom coração, capaz do mais puro sentimentalismo”. E se era um político descendente de uma família ducal, amarrado aos rituais nobiliárquicos, era também dono de “um conservadorismo esquerdista, que é imperialista, romântico, mas que se coloca ao lado dos trabalhadores”.
O seu papel na defesa dos sindicatos, de políticas redistributivas, de assistência ao desemprego ou no recuo da idade de reforma aproximam-no mais do campo do Labour do que dos Conservadores tradicionais – com os quais tantas vezes se confrontou. E o seu sentido ético era inatacável. Como quando, no final da guerra, declarou: “O meu ódio morreu com a rendição deles. Ou como quando Estaline quis assassinar “pelo menos” 50 mil chefes militares da Alemanha, Churchill indignou-se e respondeu: – “Preferia ser levado daqui e fuzilado do que desgraçar o meu país dessa maneira”.
É curioso também ver como Boris Johnson analisa hoje o contributo que Churchill deu à construção europeia, até porque ele já se assumiu como o porta-voz dos conservadores na defesa da saída do Reino Unido da UE no referendo do próximo Verão. Depois do célebre discurso de Fulton, no Missouri, em 1946, no qual vislumbrou com a sua proverbial sagacidade a Cortina de Ferro que separaria a Europa durante quase meio século, Churchill defendia que o Reino Unido fazia mal em afastar-se do processo que levaria à criação da CECA e depois da CEE. “Ser-nos-á muito mais vantajoso participar nas discussões do que ficar de fora e deixar que os acontecimentos sigam o seu curso sem nós (…) A ausência da Grã-Bretanha compromete o equilíbrio da Europa”, escreveu. Ainda em 1946, foi mais longe ao dizer em Zurique: “Temos de construir uma espécie de Estados Unidos da Europa”.
Para um homem que estava na política desde os finais do século XIX, a experiência de duas devastações na Europa eram uma lição que não se podia menosprezar. “Durante séculos, a França e a Grã-Bretanha, e mais recentemente a França e a Alemanha, flagelaram o mundo com as suas contendas. Mas bastar-lhes-á estar unidas para construírem a força dominante do Velho Mundo e formarem o núcleo de uma Europa unida em redor do qual todos os outros países se reunirão”, escreveu. Infelizmente, nota Johnson, o governo da época declinou o convite e ficou à margem. “Se Churchill estivesse no poder em 1948, se tivesse insistido em sentar-se à mesa, se o Factor Churchill tivesse a oportunidade de intervir nessas negociações europeias muito precoces, quem sabe, talvez tivéssemos hoje um modelo diferente de UE, mais anglo-saxónica e mais democrática”, nota Johnson.
Perante a realidade actual, Johnson pensa que o melhor para o Reino Unido é sair. Até porque, avisa, o papel da Grã-Bretanha na perspectiva de Churchill seria “de patrocinador, de testemunha, mais do que de parte contraente”. O que diria Winston entre duas baforadas de charuto sobre o referendo? Olhando para a sua extraordinária presciência, saber o que pensaria da Europa o homem que antecipou a guerra aérea, os tanques, o poder atómico, o nazismo e os fascismos, o totalitarismo soviético e a Guerra Fria seria sem dúvida uma boa ajuda. O que só serve para sublinhar a genialidade de um homem ao qual, com ritmo, graça e leveza, este livro procura prestar homenagem. Quem ler a clássica biografia de Martin Gilbert, seca, austera e minuciosa, e a completar com esta apologia mais ligeira e divertida estará numa boa posição para avaliar um dos homens para extraordinários do mundo contemporâneo.